domingo, setembro 10, 2017

Paulistânias II



1

Você deve esquecer que dormiu mal, que dorme mal há semanas, desde que se mudou pra cá. Esse negócio de deixar o negativo de lado (quiçá embaixo da cama), começar com o positivo (oxalá, seguir com ele até o fim), é básico, você bem sabe, então, por que não pôr em prática esse velho saber? Levante bem, levante leve. Se alongue toda antes de ir à sala abraçar o homem mais belo do mundo, que já fez café e já está no canto dele, a escrever versos, aqueles versos que, mais tarde, você amará conhecer. Para que o banho seja perfeito, além de a água estar preferencialmente fria, você também pode ouvir dez ou quinze vezes To Vals Tou Gamou, de Eleni Karaindrou. Há duas moças tagarelando embaixo da janela, mas nada de querer jogar o sabonete na cabeça delas. Concentre-se na música, tome seu banho. Se necessário, repita a canção.

2

Você deve sair de mãos dadas com seu grande amor. Constatar que a cidade está bastante esvaziada por causa do feriado da semana da pátria. Almoçar no vegetariano da Alameda Jaú (se chama Ser a fim). Ao caminhar de volta à Alameda Casa Branca, você deve reconhecer que esses pássaros rodopiando em cima do Parque Siqueira Campos são os mesmo capetinhas que cantavam às 3h30 da madrugada, zombando da sua falta de sono. Mas atenção: nada de amaldiçoar os pássaros, pois esses, todos sabem, são inocentes até que se prove o contrário.

3

Peguem o metrô em direção à Vila Madalena. Não há quase ninguém no trem. Vocês podem se sentar lado a lado. Um dos dois fará um comentário engraçado sobre metrôs e ambos se recordarão da viagem a Portugal. Desçam no Sumaré. As ruas estão ainda mais esvaziadas do que as que percorreram minutos atrás. Falem de diferenças de costumes nas cidades brasileiras, andem cerca de 20 minutos até à Luís Murat, 40. Antes, serão parados por um casal cheio de sacolas que desejará informações sobre o Beco do Batman. Não é grande a distância, você sabe, porém está quente, 28 graus, e você veio de botas, por isso, a caminhada não lhe parece nada interessante. Você vai se perguntar por que diabos calçou botas, se sabia que estava quente, se sabia que iam andar, mas logo se lembrará de que acordou se sentindo mais baixa do que o normal. E, claro, quando se acorda mais baixa do que o normal, existem apenas duas saídas: o suicídio ou usar botas. Você não tem mais idade pro suicídio, de modo que lhe restaram as botas. Não são altas, mas dão a sensação de que você está mais alta e isso é o suficiente. Também não são novas as botas e, até ontem, eram confortáveis. Porque estão a se comportar como novas é prova de que tudo muda, o tempo todo, no mundo (conforme cantou o filósofo Lulu Santos, muito bem copiando Vinícius de Moraes).

5



Como o Patuscada ainda está abrindo, encontrem o poeta que vocês vieram encontrar e andem mais duas quadras em busca de um café. Vocês verão muitos botecos com cadeiras na porta e outros bares mais chiques, até se depararem com um lugar fofinho chamado Lá Na Venda. Tomem café com bolo de milho verde (você), capuccino com pão de queijo (seu amor) e capuccino com quidim (o outro poeta que está a acompanhá-los nesta tarde). A conversa vai deslizar por literatura, vida acadêmica, a pobre situação intelectual dos cursos de Letras, equívocos da crítica e amigos em comum. Voltem pelo Beco do Batman, onde muita gente tira foto, e tirem também algumas. Retornem, sem pressa, ao Patuscada.

6

Fim de noite, voltem de Uber pro flat, mas parem antes no Bella Paulista pra comer algo, afinal, vocês beberam duas garrafas de vinho e não é bom dormir de estômago vazio depois de beber duas garrafas de vinho. O Bella Paulista está com fila de espera e, obviamente, vocês não são o tipo de casal que fica em fila, disputando mesa. O jeito é levar algo pra comer em casa. Peguem suco, umas catarinas salgadas (de queijo e palmito), outra doce (de nozes e maçã) e fujam logo desse troço. São somente três quadras de distância, vocês podem ir andando, observando o clima de fim de feira da Avenida Paulista, às 1h20. Parece uma Carlos Gomes ampliada, você diz. Bastante sinistra, retruca seu grande amor. Um casal gay passa de mãos dadas e, atrás dele, quatro boyzinhos fazem comentários ridículos.

7

Se não consegue dormir, não fique com raiva nem rumine palavrões pela casa. Esqueça. Ligue na Netflix e assista, ao lado de seu grande amor, a The Butterfly's Dream, de Yilmaz Erdogan (2013). Filme triste sobre dois poetas turcos que morreram esquecidos. Delicado e trágico, consegue mostrar a experiência de quem nasceu com o vírus da escrita. Ao contrário da maioria de filmes sobre poetas ou escritores, conhecidos ou não, em que a literatura é um dado biográfico em meio aos outros acontecimentos que perpassam a vida dos sujeitos, neste, a poesia é o alicerce onde se desenrolam dores, amizades, as descobertas, o cotidiano e todas as demais relações deles. É baseado em fatos reais, que remotam à Segunda Guerra, quando a Turquia instituiu uma lei obrigando todos os homens a trabalharem nas minas do país. Os poetas esquecidos são Rustu Onur e Muzaffer Tayyip Uslu, além do professor deles, Behçet Necatigil, que também é poeta e o único dos três cujo talento é reconhecido em seu país. A julgar pelos versos que aparecem no filme, são ambos verdadeiramente poetas (ainda que se dê um desconto de tradução e legenda).






quinta-feira, setembro 07, 2017

Ciranda-cirandinha




Contei-lhe o sonho que tivemos com ela: estava nua, presa numa casa feita de cristais e gelo. Ela respondeu que havia uma casa assim no filme do Super-homem.

— Qual Super-homem? O do Christopher Reeve? — indaguei.

Ela suspirou, impaciente:

— E por acaso existe outro Super-homem?

— Milhares. Eu já vi pelo menos uns sete.

Ela arregalou os olhos:

— Você conhece sete Super-homens?

Confirmamos. Talvez até mais.

— Não, você está maluco. Só existiram dois de verdade. E ambos eram o Christopher Reeve.

— Não, senhora! Há muitos outros. Com a mesma origem, a mesma roupa, poderes iguais, idem os problemas, ibidem os olhos azuis e a namorada jornalista.

— Mentira, você está inventando.

Não, não estávamos inventando. Havia um canal a cabo, não lembramos direito o nome, mas havia, onde passavam um Super-homem muito jovem, muito confuso. De olhos azuis também. Nem se sabe Super-homem ainda, está a se descobrir.

Ela nos olhava, perplexa:

— Como assim um super-homem que não sabe que é Super-homem?

— Exatamente. É uma série que se reporta ao início de tudo. Esse rapaz está se descobrindo ainda. Aquela velha história da jornada do herói... É um super-homem adolescente.

— Mas era só o que me faltava! E você assiste a este troço?

Assistimos, certa feita. De onde tiraríamos tais detalhes, se não víssemos ao menos alguns episódios? Vimos nalgumas tardes ociosas, é certo. Mas desistimos no meio da temporada. Era cansativo. De qualquer forma, o que queríamos com tal exemplo era justamente lhe mostrar que, ao contrário de sua mania de fixar determinadas referências como únicas, existiam muitos super-homens espalhados pelo mundo. Nós conhecíamos cerca de seis, quiçá sete, e olhe que nem éramos da geração-quadrinhos, como ela.

— Que absurdo! — ela protestou, magoada. — Sete super-homens! Com certeza, devem formar um bom rebanho de cornos.

Uma qualidade de nossa amiga era fazer comentários imprevisíveis assim. Gargalhamos juntos, enquanto ela inventava apelidos, posições e até cenas esdrúxulas para se vingar dos sete super-homens que vieram bagunçar sua compreensão de mundo. Afinal, nos esquecemos completamente do sonho com ela: nua, presa numa casa toda feita de cristais e gelo. Como no filme do Superman.

segunda-feira, setembro 04, 2017

Paulistânias


(Vista do flat onde ora me escondo, em SP)

1

- Você é vegetariana e fuma?
- Sim, porque geralmente os cigarros não têm carne.
- Mas fumar faz mal à saúde.
- Tudo bem, não sou vegetariana por causa da minha saúde.
- É vegetariana por quê?
- Birra. Mania. Falta do que fazer.
- Mas isso não tem sentido!
- Pois é. Não ter sentido é um dos pressupostos básicos da vida. Com o tempo piora.

- É verdade que você deixou de ser de esquerda pra ser de direita?
- Exatamente. Em breve deixarei de ser católica pra ser muçulmana.
- Não entendi sua resposta.
- Ah, mas eu entendi perfeitamente sua pergunta.

- É verdade que você lançou um romance com 600 páginas?
- Não, são apenas 587.
- Nossa! E você tem tanto assunto pra falar assim, Állex?
- Não tenho não, na verdade, vou escrevendo um monte de idiotices até encher as páginas.
- ?!?!

- Você sabe o que aconteceu com as farinhas, pois não encontro nenhuma nas prateleiras, nem mesmo aquelas ruins, caroçudas e fiapentas?
- Farinha de quê?
- Farinha normal, torrada, pra se pôr na comida.
- Tem de milho, na terceira fila, à esquerda.
- Obrigada, mas de milho não serve.

- Precisava vir morar, temporariamente em São Paulo, pra me dar conta de que sou baiana e não consigo comer sem farinha.
- Você não sabia que era baiana?
- Sabia, mas nunca teve qualquer importância.
- Por que não trouxe dez quilos de farinha na mala então?
- Pois é, não trouxe!

2

"A arte do romance consiste no truque de falar sobre nós mesmos como se fôssemos outra pessoa e sobre os outros como se estivéssemos no lugar deles. E assim como há um limite para a medida em que podemos falar sobre nós mesmos como se fôssemos outra pessoa, também há um limite para a medida em que podemos nos identificar com outra pessoa. O anseio de criar os muitos tipos possíveis de herói superando todas as diferenças de cultura, história, classe e gênero - de transcender a nós mesmos a fim de ver e descobrir o todo - é um anseio liberador básico que torna atraente ler e escrever romances, bem como uma aspiração que nos faz reconhecer os limites da capacidade humana de entender o outro". Orhan Pamuk, em O romancista ingênuo e o sentimental (Trad. Hildegard Feist).


3

Em vermelho, exposição de Toulouse-Lautrec (1864-1901), no MASP. Além das casas, cabarés, camarins, retratos masculinos e femininos, e cenas entre mulheres, do artista europeu, você pode rever o acervo em transformação do MASP (Portinari, Picasso, Van Gogh, Anita Mafalti, Renoir, entre outros, que vão do século 4 a.C até 2008). Trata-se de uma exposição semipermanente, nos avisa o fôlder. Um conceito bem simples, semipermanente, você sabe, né? Como tudo mais na vida. Nos outros andares tem Wanda Pimentel e Miguel Rio Branco. E no subsolo, Pedro Correia de Araújo, de quem você nunca tinha ouvido falar, mas é a melhor surpresa do dia, um pintor de se tirar o chapéu, com uma série de imagens de mulheres negras - vão de retratos de perfis, a nus delicados, flagras cotidianos e cenas eróticas (homo, hetero e swinguers). Alguns quadros estão tapados por um pano escuro donde se lê: contém cenas inapropriadas para menores de idade. Pedro Correia de Araújo, nos informa o curador no painel, viveu entre os séculos 19 e 20, entre Brasil e França. Apropriadíssima descoberta.

4

Message to Bears, álbum Folding Leaves. É o som que desembrulha esta tarde em São Paulo. A dica eu roubei do Face do escritor Emmanuel Mirdad, há uns dias. Como sempre acontece quando roubo do varal alheio, guardo nalgum esconderijo e deixo marinando, pra só depois degustar. Esse, porém, deve ter marinado demais, pois não sei se viverei mais um segundo sem essas músicas. Baixei um, dois, três, quatro álbuns... Não, não viverei mais um segundo longe desse som.

Em Não se vai sozinho ao paraíso, primeiro romance que integra a trilogia místico-erótica de Állex Leilla — cujo centro são as micro-...