sexta-feira, abril 08, 2016

Certas coisas que aprendi com João Filho...



Há dez anos, o poeta João Filho decidiu morar comigo. Era abril de 2006, e Salvador se desmanchava em chuvas, no seu outono geralmente abafado e molhado, que nem mesmo os passarinhos sabem que é outono. Para concretizar tal decisão, ele rompeu um casamento de quase sete anos. Nunca entendi direito porque desarrumou sua vida tão bruscamente, uma vez que só tínhamos, à época, cerca de vinte dias de namoro. Namoro escondido, diga-se de passagem, já que ele era oficialmente casado. No momento em que me disse me separo pra ficar contigo, senti que ele apostava cegamente em nós, e tratei de fazer o mesmo: apostar, de qualquer maneira, sem mais delongas e a perder de vista, em nós dois. De lá pra cá, aprendo coisas que, muitas vezes, só meses depois percebo que aprendi. Sutilmente, como é próprio dos poetas, as coisas dele vão entranhando em mim e só tempos depois percebo que, naturalmente, as absorvi e que não mais pretendo abrir mão delas. Muitas coisas não posso dizer, pois há limites entre vida íntima e vida expressa. Outras, mais verbalmente possíveis, listo abaixo:

1. Não se deve desconfiar das pessoas sem motivo justo: sou Escorpião com Ascendente em Escorpião e Lua em Capricórnio, e já me garantiram que deve ser por conta de tais aspectos que não boto muita fé nas pessoas. Demoro a gostar, demoro a confiar nelas, exceto naqueles casos de milagre divino em que você põe os olhos num ser humano e uma luz se acende ao infinito. Fora isso, desconfio antecipadamente de qualquer criatura que atravessar meu campo de visão. João Filho é Aquário com Ascendente em Áries e Lua em Câncer, e não sei se há explicação direta nisso, mas, nessa área, ele é o oposto de mim, não desconfia de ninguém até que lhe provem o contrário. Tive de desenvolver o exercício da dúvida com minhas próprias impressões, pois se falo fulano é idiota, logo João Filho pergunta e o que ele fez de tão idiota assim? Se não tem realmente um fato que comprove a idiotice do sujeito ou sujeita, se é apenas impressão minha (tenho pilhas de impressões sobre as pessoas, mal elas surgem na minha frente!), mesmo que o poeta não diga nada, já me sinto "errada" ou "censurada" no meu jeito de considerar determinada pessoa simplesmente uma idiota.

2. Ouvir as criaturas de Deus, interagir com elas, dar-lhes atenção, não é perder tempo: raramente desenvolvo conversas "aleatórias" na rua. Claro que gosto de anotar os diálogos espontâneos das pessoas, meus diários são repletos de falas que roubo por aí e podem vir a compor um conto, romance, crônica, ou nenhuma dessas opções, simplesmente restarem ilustrativas nos diários que jamais publicarei. Não importa. O fato é que, embora anote tais conversas, não costumo provocá-las, não partilho dessa brasilidade irritantemente cordial, nem acho normal viver numa terra onde a gente mal dá um passo já é obrigado a interagir com trezentas e tantas pessoas. É muita tagarelice pra minha cabeça. Meu amor também não é tão brasileiro assim, mas, ao contrário de mim, se falam com ele, recebem respostas educadas, disposição pra ouvir e muitos sorrisos compreensivos. Tenho muitas passagens ilustrativas desse meu desinteresse X o interesse dele. Lá vão duas:

a) 2012, Rio de Janeiro - pegamos um táxi de um hotel em Ipanema para o aeroporto Santos Dumont. Não era longe, mas o taxista, um senhor de cabelos brancos, oriundo de algum estado nordestino (Ceará ou Piauí, não me lembro bem), estava vacinado com agulha de vitrola e conseguiu narrar toda a história de sua vida nesse trajeto. Quando descemos, respirei, aliviada, e comentei: que cara conversador! Não sabe dirigir calado! Mas meu amor rebateu: você viu que história interessante? O tempo era outro, as pessoas confiavam e ajudavam umas às outras apenas porque um vizinho indicou. Fiquei me perguntando qual vizinho, pois não me lembrava que havia um. Bem, cá está o fato: o taxista chegou nos anos 1970, no Rio de Janeiro, atrás de um amigo de um vizinho, que poderia lhe arranjar um emprego. Mal sabia o nome da criatura, mandaram-lhe procurá-la num bar em Flamengo, e assim ele fez; falou em nome do vizinho, o outro prontamente o ajudou; ele se estabeleceu no Rio, hoje tem sua casa própria, seu ganha pão, é pai de três filhos crescidos e avô;

b) gostamos de comer abará acompanhado de uma Heineken geladíssima, na Perini da Graça; é, digamos assim, um dos hábitos do casal. Certa feita, o atendimento estava lento, só havia uma moça atrás do balcão, e cerca de seis pessoas esperando. Um cliente se desentendeu com a funcionária e a chamou de uma ruma de adjetivos - incompetente era o mais light deles. O cara saiu, espumando, sem ser atendido, e a funcionária ficou com cara de choro. João Filho, imediatamente, se pôs a consolá-la, puxando conversa pra distraí-la. Logo a moça já estava rindo com algum comentário dele, e o estresse de minutos atrás sequer era mencionado. Você estava dando em cima da moça?, perguntei quando o poeta se sentou do meu lado, com os dois abarás e as Heinekens. Me respeite, Alessandra, ele rebateu. Olhei pros dois pratos de abará e achei a porção muito acima do normal. Por que tanto vatapá?, indaguei, ela exagerou, não? Vatapá nunca é demais, ele disse, guloso, se não quiser o seu, deixe que eu como!

3.Pablo Neruda pode ser um bom poeta:
- Sério? Mas Pablo Neruda é um mala sem alça!
- Também tinha restrições a ele, mas há coisas muito boas, acredite!
- Até agora só vi bobagem...
- Você está de má vontade, leia Vinte poemas de amor e uma canção desesperada.
- Ah, que nada! De verborragia basta a minha...
- Leia, você pode se surpreender.

4. A chuva é o verdadeiro estado de nossa alma e não temos nada a ver com o desastre que ela causa nas grandes cidades: sempre que chove, nos alegramos de uma alegria infinita. Somos de Bom Jesus da Lapa e lá, em geral, a chuva é rara, muito esperada, muito festejada. Em Bom Jesus da Lapa, o único ser humano que não fica feliz com a chuva é minha mãe. Minha mãe odeia chuva e também não gosta muito de som/música. Contudo, é de conhecimento geral que mãe é coisa de outro mundo, portanto, não vamos dar cabimento a esses detalhes. Acho que quem escreve vive numa eterna chuva imaginária, e, quando chove de verdade, parece que mundo interno e mundo externo estão, enfim, atados. Mas desde que vim morar em Salvador, sentia culpa por gostar tanto da chuva. Por quê?, estranhará você. Explico: porque Salvador é uma cidade chuvosa, porém, enrustida, não assume que é chuvosa, então, nas épocas de maior pluviosidade, temos de suportar o mau-humor das pessoas, além das tristes notícias de ruas alagadas, casas desabadas, pessoas mortas, acidentes, doenças várias, desastres, desastres. Sentindo-me podada na minha paixão pela chuva, confessei ao meu amor que sentia certa culpa por estar feliz e produzindo tanto, quando havia tanta gente sofrendo. Não temos nada com isso, ele decretou, tranquilamente, não é problema da chuva, mas de quem não agiu quando deveria.

5. Mas, afinal, é seu(sua) amigo(a) ou um(a) cobrador(a)? Pois então! Amigo de verdade não cobra sua presença onde você não pode estar; não lhe dá papéis que você não pediu pra desempenhar; não liga pra dizer que você não ligou pra ele; não finge que vai te ajudar apenas pra cumprir sociabilidade; não te elege parceiro de empreendimentos que ele fez sem te consultar. Tenho amigos que ficam meses sem aparecer e/ou sem falar comigo. Quando nos vemos, as afinidades e o afeto retornam com naturalidade. Mas isso não me livra de alguns escritórios de cobrança que, de vez em quando, surgem em meu caminho. Detesto que me cobrem laços, porque os entendo como absolutamente naturais. Não cobro amizade de ninguém, reconheço quando os laços se desataram ou foram cortados por alguma razão maior. Antes, me deprimia tal reconhecimento, hoje, aceito-o. Quando percebo que não estão sendo amigos comigo, que estou considerando as pessoas de um jeito e recebendo de outro, recolho meu afeto, me afasto, desapareço, bem à moda de Drummond: a poesia é incomunicável/fique torto no seu canto. Sempre gostei disso: fique torto no seu canto. É verdade, eu fico - hoje fico até muito bem. Porém, vivia a me chatear com as pessoas que vinham, tortas, me cutucar em meu canto, geralmente com cobranças. Mas aprendi com João Filho a ignorar solenemente esses cobradores. Pra ele, nunca foi problema, somente questão de reconhecer: nem eles são nossos amigos, nem nós somos amigos deles. Portanto, está tudo certo, tudo em paz.

6. Quando engordo:
- Você está linda, meu amor.
- Estou?
- Demais!
- Oxente, mas se estou acima do peso!
- Está é muito da gostosa!

7. Quando emagreço:
- Você está linda, meu amor.
- Estou?
- Demais!
- Você percebeu que emagreci três quilos?
- Claro, quando te abraço, logo percebo que sua cintura está menor.
- Ainda quero perder mais dois quilos, sabia?
- Continua muito gostosa!

Como eu disse acima, há outras coisas aprendidas, mas nem tudo pode ser dito, você bem sabe. É pra ser uma listinha leve bem leve revele à pele. Hoje contamos dez anos de união. Recebi rosas vermelhas, um espumante e uma caixa de chocolates. Decidimos oficializar esse viver juntos em setembro. Por isso, imagino que a lista crescerá embaixo das novas chuvas que virão. Que bom, não?



7 comentários:

  1. Lindo querida...Tudo de maravilhoso pra vcs!!!beijos

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  2. Que vida a dois mais linda. Felicidade perene. Querida Professora.

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  3. Adorei o texto, leve e gostoso de ler!!Fiquei com um gostinho de quero mais!!

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  4. E a Moira me põe a chorar! Tu já sabes que sou besta para emoção...creio que besta como seu João para as miudezas belas da vida,também adoro as histórias dos taxistas... por isso nossa amizade cresce e cada dia e eu aprendo muito com vc e também com as histórias que vc. me conta de João Filho, que assim como eu, te chama de Alessandra...

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  5. Ler sobre admiração amacia a alma! ^^ Ainda mais quando se sabe quem são os autores.. rs

    http://frankevilacio.blogspot.com.br/

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  6. seus lindos. ah, vocês.

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  7. Lindo texto! Passei a lhe admirar, ainda mais! Que essa relação continue repleta de amor!

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