sábado, abril 11, 2015

Os irrealistas (cont.)



Anos mais tarde, acompanhado de um grupo de poetas, retornei ao local. O fantasma ainda estava lá, como se nunca houvera saído, e não fez caso da minha fuga tempos atrás. Ele quem nos falou, pela primeira vez, na existência de uma cápsula capaz de nos levar de volta a um ponto específico da memória e, uma vez lá, desenvolver o que não foi, à época, vivido. Mas não poderia ser apenas uma vivência perdida, interrompida, frustrada, era preciso haver uma verdadeira fome por aquilo que não vingou. Fome genuína = desejo concretizado, sintetizou.
De início, nada compreendemos. Ele, na sua voz esquisita, pontuou: dentro do Vasto Abismo da Memória, havia uma vereda pro Parque dos Amores Perdidos, e quando adentrássemos nele, poderíamos acessar todos os trilhos não-vividos de afetos que nos foram extirpados ou interrompidos. Esses laços podem ser recuperados, explicou, deixando claro que se referia não somente aos amores que foram interditados por ações equivocadas, nossas ou de outrem, mas, também, aos afetos raros que a vida concreta nos obrigou a abortar. Para tanto, era necessário existir um fio genuíno na memória, bastava apenas um fio, ele frisou, e o novelo poderia ser retomado quando estivéssemos dentro da cápsula.
— Qual cápsula? — perguntamos, incrédulos.
O fantasma explicou:
— É uma espécie de bolha, onde você pode vivenciar amores perdidos. Ela lê os seus desejos outrora emitidos, lê sensações, até mesmo a atmosfera, bem como as expectativas. Combina possibilidades. Analisa tanto os impasses quanto as realizações. Não apenas suas, mas da pessoa desejada. Então, se for de comum acordo, você vive aquela paixão. Entra num fragmento do tempo e vive-a, como se fosse real.
— Mas que diabo de cápsula é essa? — indagamos.
O fantasma não gostou:
— Não blasfemem — disse, severo.
Pedimos desculpas, não tivemos intenção de blasfemar, era vício, maneira humana de se expressar.
— Que cápsula é essa? — perguntamos outra vez, gentilmente.
— A Cápsula da Criação — ele respondeu.
Rimos, desconfiados.
Um de nós lembrou:
— Mas essa cápsula é a de mestra Adan! Está restrita ao uso dos poetas que a mestra escolhe em suas oficinas.
Àquela altura, todos nós estávamos inscritos na fila de espera da mestra Adan.
O fantasma, pacientemente, replicou:
— A cápsula é da humanidade, mestra Adan apenas faz bom uso dela.
Continuamos a objetar:
— Como da humanidade?! Se a cápsula está sob o comando dela e, mesmo sendo poetas, nenhum de nós foi até o momento escolhido, como teríamos acesso?
Ele não parecia surpreso com nossa reação:
— Já disse e repito: qualquer um pode solicitar seu uso. É preciso apenas que tenha sentimentos verdadeiros no coração.
Bem, pensamos juntos, que se pode saber a respeito de sentimentos verdadeiros? São verdadeiros a partir de quê? De nosso julgamento? De outrem? Aquilo nos esmorecia, em vez de estimular.
Depois de engolirmos alguns minutos tensos, um de nós criou coragem e indagou:
— E o que são sentimentos verdadeiros?
O fantasma sintetizou:
— Aqueles que sobrevivem tanto a seu deus quanto ao seu demônio interior.
— Seja menos conciso — sugerimos.
— Use a linguagem referencial — pediu nossa amiga e única poetisa do grupo.
Ele suspirou:
— Sabe aqueles sentimentos que persistem mesmo quando estamos tontos de sono? Que navegam no lustre do quarto? Que se esgueiram pelas paredes, entram disfarçados no seu sonho mais profundo e, quando você acorda, lá estão, bailando, aos primeiros raios do sol?
— Sim — respondemos. — Conhecemos essa miséria muito bem.
Ele sorriu, um tanto contido:
— Se vocês têm esse tipo de sentimento em relação a um namoro de infância, um flerte de adolescência, uma paixão dos 20 anos, um amor que não vingou aos 30 ou uma perda irreparável aos 40... Se além de vocês, o seu ex-futuro par também guarda a mesma sensação, é possível vivenciar o que tanto se desejou.
Fosse pela capacidade explicativa dele, fosse pela própria ideia que, àquele mo-mento, nos pareceu divina, todos nós suspiramos, excitados:
— Que maravilha! — dizemos em uníssono.
Um de nós, pragmaticamente, quis logo saber:
— Quanto é?
O fantasma desentendeu:
— Quanto é o quê, meu querido?
Fizemos coro com nosso amigo pragmático:
— Quanto se paga por essa vivência?
Pronto! O fantasma ofendeu-se gravemente e ralhou conosco: era assim que nos dizíamos poetas? Uns pulhas de uns materialistas que só enxergavam dinheiro em tudo?, praguejou. Logo se via o tipo de literatura que estávamos a escrever. Alguém já tem livro publicado?, perguntou, sarcástico. Ramiro disse que sim, um de nós já tinha publicado, e apontou Maurício. As metáforas devem vir com cifrões então, disse o fantasma, fazendo-nos sorrir de uma analogia tão simplória.
— Não se incomode com esses sermões inúteis — cortou Maurício, o mais objetivo e o mais velho de nós. — Assim como você tem seus valores e suas leis, que lhe orientam a palmilhar aqui, no mundo invisível, nós também temos os nossos lá, no mundo concreto.
— Isso não lhe dá nenhum direito de fazer perguntas idiotas — resmungou o fantasma. — Com esse tipo de poeta parece que a humanidade vai muito bem!
A maior parte de nós ficou avexada diante do comentário jocoso do fantasma, Maurício, entretanto, sorriu, mais sarcástico ainda que o nosso interlocutor:
— Ok, nobre pirilampo, eu fiz uma pergunta inadequada. Me desculpe, por favor. Não houve intenção de lhe ofender. Eu não sabia que a Cápsula não recebe dinheiro. Quanto ao fato de ser um poeta materialista e capaz de elaborar perguntas idiotas, não acuse o grupo de ostentar tais qualidades, mas apenas a mim. Sim, sou assumida-mente materialista, e você não me fará ter qualquer constrangimento disso. Caso não se lembre, eu refrescarei de bom grado a sua memória: o mundo concreto é feito de matéria; quem está vivo, alguma concretude há de ter, alguns mais, outros menos, do contrário, lá embaixo não estaríamos. A propósito, você é o quê? Uma assombração anticapitalista?
— Não precisamos disso — resmungou Ramiro, chateado. — Já temos bastante discussão sobre poesia e matéria e anticapitalismo lá embaixo. Aliás, discussões inúteis são o que não faltam no mundo concreto.
— Inúteis? — retrucou Maurício, no seu tom irônico. — Está sendo bondoso, meu caro. São discussões bolorentas, isso sim. Uma verdadeira fossa pública.
— Assim são — concordou Ramiro. — Mas não queria falar de cheiros, entendeu? Se o nosso anfitrião diz que aqui não temos sentido algum...
— Ah! — tornou Maurício, ferino. — É verdade, aqui os sentidos faltam, havia me esquecido desse pequeno detalhe.
E riram, os dois. Riram de se contorcer. Eu e Maria Ágata rimos também, porém, com menos ênfase, afinal, éramos mais novos e nem sempre entendíamos as piadas e ironias dos poetas mais velhos.
O fantasma olhava ora pra Maurício, ora pra Ramiro, visivelmente confuso. Por fim, declarou:
— Custa zero centavo e 100% de merecimento vivenciar um verdadeiro amor na Cápsula da Criação.
Ainda nos olhava num jeito de quem estava magoado com nossa pergunta, todavia, aquela informação caiu como pétalas de flores sobre nós. Zero centavo e 100% de merecimento! Isso era tudo que precisávamos saber. Trataríamos de merecer então. Óbvio!
Ficamos quietos. Olhando o tempo, coisa que sabemos fazer muito bem desde que nascemos. Depois de uma hora, talvez duas de silêncio, Maria Ágata pediu desculpas em nome de todos. Um tanto reticente, mas já sem rancor na voz, o fantasma aceitou-as.

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