quarta-feira, janeiro 07, 2015

Livros à metade



1. Meu amor me deu de presente de aniversário uma garrafa de Logan, e Ar de Dylan, de Enrique Vila-Matas. Ainda não inaugurei o Logan em respeito ao Buchannas, que ainda exibe oito dedos do mais profundo e castanho líquido. Assim, ambos aguardam - castanhamente pacientes, como é próprio dos uísques - que minha recente paixão por vinhos portugueses passe - passará? -, que eu retorne ao antigo, ao que não muda. E eu retornarei - penso, planejo, imagino, só não sei quando.

2. Quanto ao Ar de Dylan (mas que título péssimo em português, não?), leio Vila-Matas sempre muito devagar. Antes eu o devorava, porém, aprendi que não se deve devorá-lo, descobri o ritmo certo depois de uns 6 livros e agora não me permito mais de cinco páginas por dia. Muitas vezes, finjo que perdi o marcador e retorno ao princípio: eu já havia lido isso?, pergunto, cinicamente. Não, creio que não! E recomeço. Como os livros dele não têm começo, nem meio, nem fim, tanto faz por onde se entre ou se retorne. É desses autores que interessa quase 99% somente a escritores. Porém, seu estilo cola em nossas orelhas, contamina dias, semanas - daí a necessidade da parcimônia de leitor que há pouco descobri ter.

3. Não é pra quem procura histórias, é pra quem quer falar/pensar/respirar literatura. O mesmo prazer que experimentei quando li André Gide, nalguns livros de Cortázar (não todos) e, obviamente, com a literatura de Borges. Prazer puramente literário. Por isso mesmo, não indico esses autores a ninguém. No caso de Vila-Matas, além da eleição da própria literatura como centro de tudo, entram também impressões pop e muito nonsense - o que torna tudo patético e muito mais divertido que Gide ou Borges. Não é fácil de explicar, tampouco de produzir esse tipo de literatura. Seus imitadores são chatos justamente porque não conseguiram essa naturalidade de mentira que ele e seus antecessores têm. É de se ler apenas - mas que mais posso querer em janeiro, além de ler, ler, ler?

4. Como não posso ler Ar de Dylan de uma vez só, leio também outros livros. Não é novidade que todo leitor deve sempre ler dois, três, por vezes, cinco livros ao mesmo tempo, correto? Deve ser uma lei cósmica, pois hoje todo mundo confessa esse hábito múltiplo. Os meus simultâneos nesse momento são Quem de nós de Mario Benedetti, e Mar inquieto, de Yukio Mishima.

5. Mishima ainda não me disse a que veio, o romance traz aquelas histórias que já lemos trocentas vezes: alguém se apaixona por outro alguém que vem de uma classe social distinta e isso vira um empecilho ao amor. Que chato!, penso diante de um argumento tão insignificante. Bastante descritivo, o autor vai acrescentando aqui e ali uma nota psicológica ao enredo, que é o que salva até agora o livro. É a história de um rapaz pescador, numa ilha medíocre onde absolutamente nada acontece. Narração em terceira pessoa, onisciente e monótona tal qual a ilha. Imagino que seja pra passar essa sensação de vida estagnada ao leitor. De repente, chega uma moça atraente na ilha. Filha de um rico morador que quer que ela se case com outro bem nascido das redondezas. E adivinhe? O pescador pobre começa a se interessar pela moça rica. O pai não irá permitir, é claro. Que vai acontecer? Alguma tragédia, suponho. Se assim não for, estará apodrecido o romance. Terá de haver uma boa tragédia a fim de salvar essa história clichê. É a única estratégia que se pode usar num caso assim. Mas eu me pergunto se terei vontade de saber mais tarde, amanhã, talvez? Qual! Toda hora largo fora o livro e fico repetindo a mim mesma: mas não me disseram que era bom esse Mishima? Não me garantiram que era um puta escritor? Que aconteceu?

6. O livro de Benedetti também fala de uma história pra lá de clichê: um triângulo entre uma mulher e dois homens. Melhor dizendo, um adultério feminino. A questão, entretanto, jamais é simplória, pois se trata de um prosador de mão cheia e com ele jamais perdemos tempo. É o terceiro livro dele que leio. Estou na metade desse. É pequeno, bem pequeno, mas não tenho pressa nenhuma, afinal, janeiro é meu mês preferido, mês em que posso deixar tudo pela metade (hehehehehe)! Como escreve bem Benedetti! A cada página murmuro: mas que sacana!

7. A história toda é uma bobagem - todas as histórias alheias não são absurdamente bobas? -, o que ocorre de diferente com Benedetti é que ele tem uma lente própria, nasceu com ela, imagino, e vai usando-a pra filtrar tudo que é mais intrigante e reflexivo na conduta dos personagens. Mesmo a história sendo déjà-vu, ele retira dali algo inusitado e/ou reflexivo, com o qual se pode aprender. Isso não é fácil e é o princípio de toda arte. Leio um pouquinho, paro, olho as amendoeiras, vou à cozinha buscar café. Estou na varanda, que é o melhor lugar pra se ficar em janeiro. Retorno e leio mais um tantinho. Olho o relógio. Daqui a pouco tenho de parar e escrever, afinal, também sou uma escritora, não? Mas, bem, vou ler só mais um parágrafo... Leio. Não é que ele me surpreende mesmo? Todo bom prosador é um verdadeiro filho da puta, está claro, todavia, que dizer de um prosador que, além de bom, é enxuto? Grandessíssimo filho da puta?

8. Exemplifico: numa cena em que o menino presencia o pai agredir verbalmente à mãe, pensamos que vamos entrar num sem fim de traumas que tal episódio gerou na criança. A cena por si só é batida demais e logo eu me vi dizendo: lá vem essa chatice de rapazes com problemas com a figura paterna, que saco! Porém, o que Benedetti destaca? O anel de pedra vermelhíssima que o pai usava e o espanto do homem de hoje que, ao recordar tal cena, confessa-se igual ao pai. Isto é, mesmo lá, quando menino, já concordava com tudo que pai dizia a respeito da mãe. Não concordava com a violência dos verbos, com as agressões paternas, mas concordava com o significado deles. Assim como o comportamento medroso e passivo da mãe lhe irrita profundamente, mas o sentido de suas palavras, sempre tão doces, não! Então, o personagem é um cidadão que costuma compreender o significado das coisas, todavia, raramente concorda com suas formas, concluo. O mais interessante é que Benedetti não diz isso em momento algum, apenas nos induz a pensar isso do personagem. Em seu livro, é tudo aberto e contínuo, qual praia onde vamos por onde queremos ir. Tive de reler a cena. Mas de onde ele tirou isso?, fiquei me perguntando, de onde ele tirou que se pode discordar do significante e não do significado? Não é o contrário, quase toda a história da humanidade não é justamente o contrário?

9. Esse último escritor eu indico a qualquer pessoa. Claro. Se quiser, comece por A borra de café. E bom janeiro pra você!

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