domingo, junho 15, 2014

Mais uma da Carochinha



Conto da Carochinha para adultos que bateram demais a cabeça na infância (quedas bruscas, descuidados maternos, brigas com coleguinhas) e hoje apresentam problemas de raciocínio, porém, não sabem disso:

1. Era uma vez um lindo país varonil onde seus governantes resolveram beneficiar em 100% a indústria automobilística, aumentar consideravelmente o lucro dos banqueiros e dos demais grandes empresários, sob a desculpa de estarem melhorando a economia da nação. O mundo estava em crise? Sem problemas, carros e eletrodomésticos da linha branca para todos. Eba!!!, gritou o povo, feliz por ser governado por gente tão inteligente, cujo ministro acabava de descobrir que o problema da economia é o consumo.
2. Esse mesmo governo se orgulhava de fazer caridade com o chapéu da classe assalariada, distribuindo um negócio fantástico chamado bolsa família: ajuda os pobres, injeta dinheiro na economia de muitas cidadezinhas, garante os votos por mais umas cinco ou seis eleições, e, o melhor!, não precisa tirar um centavo "dos seus pares", pois basta aumentar os impostos de uma gente abominável chamada "classe média". Essa gente chata e esquizofrênica não tem muito como sonegar impostos, morre de medo da Receita Federal, e é tão estúpida que fala mal de si mesma, portanto, pode ser facilmente calada com meia dúzia de artigos em jornais estratégicos que a chamarão de preconceituosa e elitista, caso reclame ou seja contra o bolsa família (verdadeiro amparo para os pobres e desvalidos do país).
3. Mas ainda era pouco! Não satisfeito com essa belíssima transformação de valores e lógica, esse governo trouxe a Copa do Mundo pra nosso país varonil. Mais uma vez, a despeito de promover uma paixão nacional - o futebol - aproveitou para beneficiar seus "parceiros" em licitações desonestas, tornando lugar comum o desvio do dinheiro público, em detrimento do quase nenhum investimento na saúde e educação pública. Ocorreram alguns protestos, é claro, nem só de classe média esquizo vive o país varonil, mas nada grave, nada definitivo, nada que mudasse o curso dos rios$$$!
4. Todavia, eis que uma coisa esquisita aconteceu: na abertura oficial da Copa, esse governo é vaiado e xingado em pleno estádio e debaixo dos olhos do mundo inteiro. Pânico! Revolta! Indignação! Como explicar? Os deuses enlouqueceram? Sim, desde a Grécia já não eram muito confiáveis, vide Homero. Agora então, perderam a medida! Pobre governo, cujo líder é uma mulher! Tem passado por muitas provações essa pobre governante. Há alguns meses, viu a cúpula de seu partido ser perseguida pela mídia elitista, pelos classe média coxinhas e por um inimigo indestrutível chamado Joaquim Barbosa. De punho em riste e gritando palavras de ordem, essa presidente viu seus colegas (totalmente inocentes) da alta cúpula do partido serem presos por pura perseguição política, e isso, reparem!, num país aparentemente democrático. Será possível? Sim, um horror! Era o fim da democracia, a volta à ditadura! A pobre presidente nada pôde fazer. Aumentou alguns quilos, é verdade, mas seguiu em frente. Porém, essa nova injustiça é difícil de aguentar, afinal, as vaias e xingamentos grosseiros foram movidos por puro preconceito! E por machismo, é claro. Que fazer diante de um fardo tão duro? A quem culpar?
5. Por algumas horas, o país mergulhou em trevas, enquanto a seleção brasileira vencia por 3 X 1! Mas na manhã seguinte, glória das glórias, surgiram os carochinhas. Criativos e imbatíveis, inventaram "a verdadeira narrativa":
a) as vaias e xingamentos foram oriundos de uma elite branca que não aceita qualquer tentativa de igualdade no país;
b) a presidente é uma vítima, nada fez pra merecer tal desrespeito.
Aplausos! Adesões! Bloqueios no Face! Retuitamentos a mil! Editoriais nas revistas aliadas! Solidariedade de inocentes!
Pronto, passou. Foi só um susto.
6. Banqueiros, indústria automobilística e empresários financiadores da campanha do atual governo, vocês que são de fato a elite do país, durmam tranquilos. Mais uma vez, nada respingará por aí. A culpa é da elite branca. Não essa que está de fato e de ato no poder, não essa beneficiadíssima e que nada tem contra os governantes, o bolsa família, a Copa (muito pelo contrário!), mas aquela outra, a classe branca média invisível, essa entidade inimiga, assalariada, esquizo, que agora, vejam só!, repete nas redes sociais sua indignação contra o comportamento grosseiro... de quem? Dela mesma? Exato. Dela mesma.
7. E aí, você entendeu alguma coisa, criança?
8. Nem eu!

sábado, junho 07, 2014

Carochinhas Varonis



1. De uns tempos pra cá, tenho me lembrando muito das histórias da carochinha que eu ouvia quando criança. Basta entrar no facebook ou folhear algum jornal ou revista: vemos pipocar aqui e ali textos "aparentemente inteligentes" e "independentes" acerca de problemas nacionais. São as carochinhas do Brasil varonil. As autorias são variadas, porém, os textos que chamam mais a atenção vêm de rubricas que revelam alguma figura consagrada pela opinião pública - "intelectual", "jornalista", "artista" ou "escritor". Os argumentos trazem um raciocínio "brilhante" aos olhos dos leitores pouco analíticos e de tendência a se impressionar. Sabe aquelas bobagens que soam grandiosas quando estamos num bar sob o efeito da terceira ou quinta dose de Red Labbel? Sim, pode ser de Ice, depende do que você prefere, gatinha. Com uísque você cai? Então, vá de Ice!

2. Cinco doses de Red Label ou Ice e você também achará brilhante que uma figura tente defender a Copa no Brasil com argumentos fantásticos de que:
a) na Inglaterra, durante as Olimpíadas, também houve desorganização, e ninguém condenou o governo inglês, nem ninguém (pasme!) falou mal da Inglaterra. Ora, se os ingleses não falam mal da Inglaterra, como então nós, brasileiros, podemos falar mal do Brasil, gente?!?! Essa carochinha é boa: na pedagogia antiga, puxaria nossa orelha, nada de falar mal do país, comportem-se!
b) nós, brasileiros, gostamos de falar mal daqui, sem conhecimento do que ocorre nos outros lugares, de forma burra, antipatriótica e automática, é uma pena. Essa carochinha é mais elaborada, culta, viaja, conhece o mundo e diversas culturas, como podemos nos contrapor a ela se mal conhecemos a Argentina?
c) temos, sim, condições de fazer um grande espetáculo e surpreender o mundo, mostrando que nosso país é civilizado e sabe organizar um mundial. Opa! Carochinha positiva! É tipo nosso professor de musculação: não pare, vamos, você consegue, força, vai dar certo, o petróleo é nosso, todos juntos vamos, pra frente Brasil, salve a seleção! Acho que essa está atualmente em algum cargo ou projeto do PT, mas com certeza é neta de Médici, pessoal, a origem não nega.
d) os desvios do dinheiro público existiram desde que o Brasil foi fundado e não são justificativas pra sermos contra a Copa. Rapaz, que carochinha é essa? Está cansada? Sim, conformadíssima, quer nos ensinar a resignação, a corrupção já existia antes de ti, meu filho, se aquiete, você não vai mudar o mundo agora, na véspera da Copa, entendeu?

3. Outra carochinha ótima é a que resolveu colocar todas as consequências das manifestações públicas, surgidas nas cidades brasileiras do ano passado pra cá, na conta da mídia. Sim, porque não há problema nenhum nas manifestações. Esqueçamos que o fenômeno calou esquerda, centro e direita, deixou a gente sem teorias ou explicações, nos fez ficar boquiabertos com o caráter esquizofrênico dessas manifestações. Nada disso importa! O que importa, sublinha a carochinha, é que a mídia no Brasil é de direita e está contra os blacks blocks - meninos pobres imbuídos de uma verdadeira vontade de mudar o país. Essa mídia inventou a violência e o vandalismo das manifestações. A mídia, a verdadeira inimiga da nação, já havia inventado o mensalão do PT e "escondido" o do PSDB, já havia eleito Joaquim Barbosa como o grande defensor da nação. Por isso, agora essa mesma mídia está a inventar os vândalos, um termo que discrimina os pobres revolucionários que quebram agências bancárias, supermercados e lojas de surf em Ipanema! Vejam só: lojas de surf em Ipanema merecem piedade ou respeito da gente? Claro que não! Merecem ser quebradas, ninguém trabalha nelas, ninguém depende delas pra sobreviver, quem compra em lojas de surf são pessoas inúteis, americanizadas, capitalistas, que, ainda por cima, surfam!!!

4. Uma carochinha com grande conhecimento histórico chega a uma analogia maravilhosa: por que chamar os blacks blocks de assassinos, se até agora eles só mataram mesmo um câmara-man, enquanto o presidente dos EUA, que jogou uma bomba em Hiroshima, mesmo com a guerra ganha e o Japão não oferecendo mais nenhum perigo, não foi chamado de assassino? Assassinar é questão de quantidade, meus caros, anotaram? E também de motivo: o presidente dos EUA não tinha mais nenhum motivo pra jogar bomba no Japão, enquanto os blacks blacks estão defendendo a nação. E nesse projeto coletivo tudo é válido. O que essa carochinha está nos dizendo é que não devemos nos incomodar em ter nosso pai, mãe, filho, amigo, vizinho assassinado, há uma causa maior que nossa dor individual, percebem?

5. Há também as carochinhas que jogam a culpa de todo e qualquer problema do país na classe média. Inventaram até o termo classe média coxinha, a fim de ser mais implacável com o inimigo. É brilhante. Todas as carochinhas passaram a dormir felizes, sentem-se livres porque não fazem parte dessa entidade invisível: a classe média coxinha - nessa e na mídia de extrema direita recai a culpa de todas as mazelas do nosso país.

6. Fico me perguntando por que as carochinhas não comentam que, na prática, não existe problema nenhum entre governo, empresários e black blocks: todas as agências depredadas podem requerer do seguro o ressarcimento dos prejuízos ou podem repassar o prejuízo pros clientes, sejam esses clientes a favor ou não dos black blocks, sejam ricos, classe média coxinha ou não. As carochinhas "livres" não nos dizem o óbvio: que os governos estaduais, municipais e o federal estão a aproveitar a ação dos "vândalos" pra refazer os pontos de ônibus, os postos policiais e demais patrimônios depredados através de contrato sem licitação, por causa do caráter emergencial da situação. Neste caso, os blacks blocks são uma bênção. Todos desviam ainda mais o dinheiro público e agora sem a ameaça das investigações da Polícia Federal e Tribunal de Contas da União. Os carochinhas não dizem que os comerciantes que têm seguro contra situações de calamidade ou insegurança nacional também não têm do que reclamar dos blacks blocks. Não dizem que os comerciantes não-coxinhas, ou seja, os comerciantes... banana-real? Os comerciantes pastéis? Os comerciantes pão com ovo? Enfim, aqueles que não têm seguro e vivem do que vendem diariamente, que tiveram seus salões, lojas, mercadinhos destruídos, não precisam chorar: podem pedir ajuda à população, inclusive pelo facebook, podem fazer bingo, rifa, correntes, o Brasil é grande e todos ajudarão.

7. Não há nenhum problema com os blacks blocks, nos ensinam as carochinhas que conhecem profundamente a história brasileira: estão fazendo em menor número aquilo que os empresários e governantes fizeram, a saber, depredando o patrimônio público. Assim como o PT não está roubando, mas fazendo aquilo que o PDSB fez antes e ainda faz em alguns estados, e o PSDB por sua fez fez aquilo que o PMDB faz há muito tempo, que por sua vez só fez aquilo que o antigo PFL fazia, que por sua vez... Não se pode condenar um grupo de pessoas que está fazendo aquilo que os empresários e governantes fizeram, gente, anotaram? Errado é o presidente dos EUA, claro, aquilo, sim, é assassinato. E assim vamos longe: errados são os empresários... coxinhas também? Ou caviar?

8. E eu que pensava que nunca mais iria ouvir as carochinhas... Caramba, elas não têm limites mesmo!

Em Não se vai sozinho ao paraíso, primeiro romance que integra a trilogia místico-erótica de Állex Leilla — cujo centro são as micro-...