quarta-feira, julho 25, 2012


Zéo: não entendo por que você foi embora tão cedo. Ficou me devendo um vinho do Porto, que tomaríamos numa tarde livre de quarta, eu, você e João, aqui em casa, na varanda, olhando as amendoeiras. Tomo este cálice agora sozinha e leio os últimos escritos que você me enviou por e-mail.
Vá em paz. Sentiremos em excesso a tua doce falta.
Te amo.

[...]
3
E lá estamos: jogados no vazio. Quem nos recordará? De qual desejo fazemos parte? Nem mesmo as solidões se encontram.
4
Suicidiário – um neologismo para nomear o morrer contínuo a nos habitar.
5
Os desvios nos levam ao outro, aquele que nos multiplica e nos faz desaparecer ao dobramos esquinas.
6
As interrogações não trazem respostas. As portas e as janelas não se fecham, nem se abrem.
A inutilidade delas trai toda a paisagem.
7
O que é mesmo uma paisagem?
8
Atravesso de um lado para o outro e de novo atravesso de um lado para o outro e de novo atravesso de um lado para o outro e de novo atravesso de um lado para o outro e de novo atravesso e sou atravessado.

José Luís Franco (1960-2012)

sábado, julho 21, 2012

(Foto by João Filho, Niterói-RJ)


“PORQUE QUEM NÃO É CONTRA NÓS É POR NÓS”

Para Renato Russo
in memoriam


– Fica. Por favor, fica. Ei... olha pra mim: sou um homem cansado, tão velho e cansado me acho que fico a lembrar a coisas pequenas. Teu hálito na madrugada... Sabonetes cheios de pêlos... Tampas perdidas de xampus... Ânsias que me faziam engolir uma dúzia de analgésicos. Teu país e teus costumes. E tantos detalhes de sobrados, de tapetes, de largos, de noites, que não mais sei se são teus, mostrados por tua verdade que acasalo, ou se de repente eu mesmo os vi, tonto que ando pelas ruas nesse mundo de buracos que me espantam... Buracos que... Por que diabos estou rindo? Não, não, olha, não é nada engraçado, tem pavor de buracos públicos. Tenho os medos mais absurdos do mundo, e eles apenas significam que na verdade eu já não tenho medos, mas descargas. Uma tensão que sobe, dói, me impede de dormir seis horas de sono, me faz andar nos ladrilhos desprotegido, contrair vírus noturnos, amanhecer tossindo. Fica, evita essa enxaqueca pra mim. Eu fumo tanto, bebo tanto, como quase nada, se você não está aqui pra brigar comigo, pra implicar com o que faço, o que desfaço, o que esqueço, pra estabelecer horários superiores aos meus tão naturais. Você é tão disciplina, amor, tão lembra-tudo, tão faz-tudo... Sei lá, esse seu jeito de andar arrastando minúcias pela semana: o que precisa de conserto imediato, o que tem de ser jogado fora por culpa minha... Eu não me importo, nunca me importei, só preciso que fique aqui, no meu país, falando minha língua, saindo comigo e com meus amigos, os quais gostaria que fossem seus também... Sabe o que eles dizem? Dizem que você é a pessoa certa pra mim, dizem que você fala português direitinho, que eu, enfim, tomei jeito de gente, que você é muito bonito... É sério, por que você está rindo? Você é bonito pra cacete, porra! Olha, demorei a acreditar que aquele olhar atravessando o néon e o barulho daquele raio de boate, aquele olhar que achei de repente tão puro, fosse destinado a mim. Um cara desmilingüido como eu, escondido atrás de copos de uísque, barba, óculos e camisa de mangas compridas, escura... Um cara bonito, pele limpinha, gostoso assim, eu disse, não olharia pra mim. E os meninos: “é pra você sim! Olha lá, olhou de novo, tá te encarando!” Meu Deus, eu pedi outro uísque, “gente, de onde ele saiu, não me enlouqueçam!” Perguntava, perguntei a todo mundo: amigos, conhecidos ou não, quem era, se era novo por ali, quem podia me apresentar a você. Veja, até ali, naquela porcaria de lugar onde todo mundo se pega e se acha no direito de avançar, eu tinha pudores de uma abordagem direta. Disseram: “conheço, acho que já o vi na praia”. Que praia, que praia, quando, com quem? Era tanta ânsia de repente... Ele é tão jovem, era o que eu pensava, você é tão jovem, amor... Aí, alguém me perguntou se eu tinha gostado de você, pois podia nos apresentar, “gostei, ô, se gostei!” Me movimentava lento e sabia que tinha de ser rápido no meio daquele monte de pernas grossas, escondidas em calças jeans. Não tenho certeza de quem puxou minha camisa e disse “ele é gringo”, “gringo?”, eu devo ter gritado. “É, ele é norte-americano”, sopraram outra vez. Juro que não estou fazendo cena, eu sinto tremor até agora, sabia? Nossas mãos se tocando, amor, eu te convidando pra beber alguma coisa, “não bebo”, você respondeu, “americano de onde?”, te perguntei, “de Phoenix, mas moro em San Francisco”, “não diga, eu adoro San Francisco!”, “oh, verdade?”, really, really, my love, eu pensava, enquanto as pessoas nos empurravam pedindo licença. “Estamos impedindo a passagem de quem vai pra pista de dança”, você gritou, “você dança?”, perguntei, nossa, eu perguntei na hora exata em que trocavam de música e de ritmo, o copo pesando na mão, “dança comigo?” Ah, Johnny, você disse yes, yeah, ok, que porra mesmo você disse? “Sim, danço”. Minhas mãos não se contentavam em apertar tua cintura, queriam te despir logo, em qualquer lugar, naquela noite de surpresas que você me reservou, tua voz em inglês dizendo que eu era o primeiro a te penetrar de verdade. Eu não queria acreditar que você só tinha tido até ali amores orais. “Primeiro-primeirinho?”, eu caminhava depois no corredor, na sala, na varanda, na cozinha, enquanto você dormia, “o primeiro? Será possível? Com toda aquela suposta evolução sexual do mundo norte-americano?”, caminhava jogando fumaça fora, não acreditava que tinha conseguido te trazer pra minha casa, não acreditava nas palavras que dissemos de joelhos na cama, olho no olho, coisas fortes que não se diz na primeira vez, “quero ficar contigo além dessa noite, todas as noites da minha vida, envelhecer do teu lado”. Até hoje isso me entontece, sabia? Pode dizer que é vaidade, bobeira ou romantismo barato. Não importa, fiz parte do teu segredo, eu te conduzi à noite inteira até que, exaustos, nos mordemos na boca e você adormeceu... Se você não ficar, o que será do meu peito sem este segredo? Repito que sou um homem cansado, 48 anos velhos, velhos. Já não tenho muito pra estragar, veias fodidas de heroína, fígado fodido de álcool e enlatados, narinas fodidas de pó, cigarro, São Paulo-Rio, Rio-São Paulo... Te contei que, às vezes, meu pulmão esquerdo parece abafado? Eu digo esquerdo, mas pode ser o direito também, ou ambos, algo que sufoca na altura do coração, que espalha, espalha... Pode ser o rim, sei lá, uma dor comprimida, complicada, enchendo todo esse lado aqui, entende? Eu diria que tem poeira correndo junto com o sangue pelo corpo todo, e quando chega aqui, justamente nessa passagem, uma corrente maior de oxigênio talvez... Ou de gás carbônico... O que é que há? Não faz essa cara não, estou dizendo porque sinto, se você ficar eu prometo fazer um monte de exames... Ok? Parar de fumar, correr contigo de manhã cedo, mudar a alimentação... Não é por chantagem não, é que se você for embora pra mim tanto faz o rim, o coração, o ar, o pulmão direito, o esquerdo, que doam até a morte, que se fodam... Eu pouco me importo, Johnny, pouco me importo... Bom, pelo menos é uma dor pra me tirar dos lençóis frios... Né? O que foi? Por que este balançar triste de cabeça? É pra mim que está fazendo esta negação? Ah, Johnny, Johnny... Vem cá um pouquinho, vem... Só pra eu te sentir mais uma vez comigo... Assim... Adianta pedir no teu ouvidinho, assim, bem juntinho... Hummm... De leve... Beijando assim... Cara, que cheiro gostoso você tem aqui, hein! Te pedir pra ficar... Adianta? Fica, vá... Vamos mudar a decoração da casa, eu compro tudo que você achar bonito, tudinho, vamos mudar de apartamento, de rua, de bairro, de cidade... ‘Cê quer? Vamos comprar uma casa à beira mar, com varanda e cachorros no quintal? Hein, amor? Ficar, me ajuda a criar minha filha, se você a visse agora dormindo lá no quarto lilás dela, sonhando com bonecas, tão alheia à desgraça que está acontecendo com o pai dela... Venha comigo um instante, Johnny, vem ver... Não, não vamos acordá-la, não se preocupe, só quero que você a veja dormir, como ela dorme tranqüila, segura de que amanhã eu vou levá-la de volta pra casa de sua mãe, onde ela vai passar a semana, brincando e estudando, estudando e brincando, até chegar o sábado e de novo eu ir buscá-la... Jamais imaginaria que no próximo fim de semana o pai dela vai estar fora de órbita, drogado, embriagado, caído em algum quarto de hotel com algum desconhecido, ou aqui mesmo, num estado lamentável, sem atender telefonemas, sem comer, sem dormir, só esperando e torcendo pra que você se arrependa e volte e arrebente a porta da rua e... Você tem coragem de abandonar o pai dessa criança, Johnny, de nos fazer tanto mal assim? Não tô dramatizando, tô falando sério, fica, pelo amor de Deus ou de qualquer outra porra que exista nesse mundo e você considere e acredite, fica! Quando eu terminar este maldito filme, a gente tira férias... Você escolhe: campo, montanha, mar, neve... Onde você quiser... Eu vou estar tão cansado que, sabe?, tanto faz, tanto faz... Três anos com este projeto de filmagem na cabeça... Três anos de um lado pro outro atrás da materialização dele... Deus, como estou cansado... Só penso em terminar, terminar, terminar... Olhe, vou te contar uma coisa, quando eu ficar mais velho um pouco, daqui a alguns anos, vai ser impossível acalentar ilusões neste lugar, percebe? Eu vou embora daqui, vamos os dois embora, amor, minha filha vai estar crescida mesmo, ocupando-se com os seus próprios filhos, aí, então: bye, bye pras idéias de tomadas e diálogos... Tá ficando tudo velho e repetitivo mesmo, há séculos que está, mas eu insisto, insisto, que mais hei de fazer nesta vida? Nada, nada, bye, bye pra política, pra literatura, pra música brasileira... A gente pode ir pro teu país, falar tua língua e viver perto de sua gente... Sim, eu sei, sua gente não existe, você vivia só há muito tempo, tudo bem, tudo bem, mas sei lá, deve ter alguém, não? Um primo, um amigo... Hã? A gente compra um sítio, ‘cê não gosta de sítio? Então! Nós dois, só nós dois. Plantaremos frutas, plantaremos alface, lá na tua cidade dá alface? O que é que se planta por lá? No campo. Vamos viver no campo, que nem aqueles hippies já esgotados, que simplesmente cortam a urbanidade de uma vez por todas de suas vidas... Quantas vezes você me disse que adorava a paz dos campos, o silêncio, o frescor? E eu nunca estava disposto, nunca, de um lado pro outro soprando fumaça, Rio-São Paulo, São Paulo-Rio, telefonemas, papéis, dinheiro, jornais, festivais, aviões, carros, carros, referências, livros, livros, adaptações, cinemas, cinemas. Chega. Não quero mais, eu te juro, cansei. Já faz tempo, venho me sentindo cansado não é de hoje... É só o tempo de terminar o último filme, amor, é, o último mesmo... Depois vamos pra sua terra... Falar tua língua... Não se preocupe que eu não vou tentar uma de cineasta na tua América Unida não, o único lugar que precisa dos meus filmes é este país desgraçado onde ninguém dá a mínima pra cinema nacional... Nós vamos viver bem, você sabe que alguma grana a gente tem, sou um cara de sorte, afinal, você também é, eu falo legal a tua língua, então não vai ter problema, sei tudo sobre como se virar fora do Brasil, já me virei tantas e tantas vezes, meu Deus!, você nem era nascido ainda... Então, você fica? Olha, vou fazer uma montagem em Nova Iorque neste filme... Pra você... Nova Iorque amanhecendo, Nova Iorque anoitecendo, vista pelo alto, por terra, por janelas de carros velozes, New York, New York... Ponho aquele cantor brasileiro que você mais gosta pra cantar no meio... Eu tenho um amigo que conhece ele, sabia? É, já foram amantes e tudo... Ou você prefere na gravação original do Sinatra? Quem sabe, quem sabe... Você está tão mudo... Detesto que fique assim... Me abraça, fala alguma coisa, vou colocar são Francisco... Filmo você andando na penumbra em São Francisco... Se você quiser, vamos pra lá amanhã mesmo filmar, não tem problema, eu dou um jeito, sempre dei um jeito de conseguir todas as cidades ideais... Faço qualquer coisa por você, pra te agradar... Hein, Johnny, diz que quer, vá... Já me viu chorar antes? Pois olhe, olhe pra mim... Amor, me sinto tão fracassado... Duvido que você tenha coragem de separar tuas roupas das minhas... Eu pus meu nome e o seu em todos os livros, que nem adolescente babaca, e não pus o “e” ligando-os não, pus and... é, and, que babaca! Nossa, um cara na minha idade... é o fim, né? Quando me apaixono sou tão idiota, tão idiota... Não sei falar engasgado assim, é difícil... Você deve estar pensando que choro pra te convencer, que sou um filho da puta sujo, chantagista, baixo, mas eu sou mesmo, sou, não me importo, nunca me importei... Vem cá, deixa eu te mostrar uma coisa: tá vendo esta foto aqui na minha carteira? Ando com tua foto o tempo todo, apresento você às mais diferentes pessoas, “este é o Johnny, meu companheiro, meu namorado, meu menino”, sempre que perguntam se sou solteiro etc, etc., e aqui, atrás da tua foto, sabe o que guardo? A letra daquela música que você cantou uma vez pra mim, lembra? Naquele dia difícil só tua voz poderia cantá-la no meu ouvido. Sempre que a escuto, os acontecimentos daquele dia me voltam inteiros: meu pai morrendo no corredor de um hospital, dois dias depois de minha mãe ter partido; o choro dos vizinhos, dos irmãos, dos parentes, dos netos, tinindo, tinindo... Só eu não conseguia chorar, nem comer, nem dormir. A cabeça formigando, você pedindo pra eu relaxar... Mas como relaxar? Não podia, não tinha condição nenhuma. Então você veio, acariciou meu peito, as mãos, pressionava na testa, entrava com os dedos pelos cabelos, lentos, calmos, companheiros... Só teus dedos poderiam, sabe? Correr tão vagarosos pelo pescoço, ombros, peito, abdômen, até a planta dos pés, e depois, na volta, descasarem úmidos sobre meus quadris, ao mesmo tempo em que você aproximava sua testa à minha e escorregando um pouco os lábios pro lado esquerdo do meu rosto, buscando meu ouvido, começava a cantar Stand by me todinha e mais de uma vez. Você canta tão legal, Johnny! Sério, sério, não faça esta cara irônica, você canta superbem! Só mesmo tua voz foi capaz de me trazer de volta daquele estado perturbador, eu já não conseguia ver os objetos, os móveis, as ruas, em seus lugares fixos, encaixados, sem que fosse imediatamente tomado por uma vertigem, uma sensação ruim de que tudo estava se movendo, ia despencar em minha cabeça, me achatar contra a terra, entende? Não, você é difícil, você não acredita, pensa que estou dramatizando pra te impressionar... E estou mesmo, estou, não nego que esteja, o que você quer que eu faça? Que me sente e aceite numa boa te perder? Não, você não vai embora, não vai passar por aquela porta enquanto eu estiver vivo... Olha pra mim: tá vendo este suor frio na minha cara? Suor de quem já não se sente capar de continuar um segundo a mais nesse duelo... Sim, porque está virando um campo de forças isto aqui, sempre foi, aliás, sempre foi, você não é uma pessoa fácil, devo considerar... Mas antes havia mais carinho e dissimulação... Dissimular, às vezes, é bom, faz as pessoas estarem mais próximas sem tantas rugas... Enfim, estou cansado... Que queres que eu faça pra que fiques comigo? As noites que passamos separados daquela outra vez que fostes embora foram tão ruins... Podres, podres, um retrocesso. Antes de você era mais fácil suportar as noites insones, noites de choro contido – porque não sei chorar de verdade, é aquela coisa, a doença de macho, sabe? Passa de avô pra pai, de pai pra filho, de filho pra neto –, ah, são noites suprimíveis que nunca passam, e eu, impaciente, me desgraço por aí atrás de qualquer diversão, preenchimentos, fuga, sexo com desconhecidos, meninos pagos, gozos rápidos, sexo com camisinha, oh, Johnny, você não faz idéia de como odeio camisinha! Odeio-odeio-odeio-odeio! Com você é tão diferente, tão morno, tão certo, tão sem máscaras! Mesmo quando inventa que estou te traindo e exige exames e o uso maldito de preservativos, a forma como você exige, como coloca essas coisas entre nós, é tão ímpar! Em vez de me irritar só me apressa mais a realizar os exames, a te provar que estás errado, não te traio nunca, não tens nada a evitar de mim... Sempre tive sonhos bons depois que nos amamos... Uma vez teve aquele dos campos de trigo imensos, infinitos, campos de um amarelinho nascente que dava gosto ver. Ficavam balançando, os campos, o amarelo, até o céu escurecer e encobri-los de negro... Não acontecia nada no sonho. Só isso. Tão bacana sonhar assim... E temos tanta vida pra dividir ainda, Johnny... Por que diabos você não fica aqui comigo? Disse outro dia que eu era teu melhor amigo e agora que ir embora... É assim que trata teu melhor amigo? Poxa, falta tanto filme pra gente ver junto... Fiz uma lista na semana passada, anotei uns que tenho certeza: você nem era nascido quando foram lançados! O que é que você pensa, afinal, que irá fazer longe de mim? Amor, não vivemos quase nada, dez anos não são nada quando se pode envelhecer juntos... Você não quer envelhecer comigo? Ah, não pensa em velhice por agora... Está certo, está muito certinho, você é mesmo muito jovem, mas não será sempre assim, ouviu? Você precisa saber que uma hora qualquer, quando se acende calmamente um cigarro e, de súbito, este lhe cai das mãos, e, ao abaixar-se pra pegá-lo, você se surpreende com um ataque prolongado de tosse, com a lentidão do seu corpo ao se levantar outra vez, e, levantando-se cada momento mais lento, você se depara e tem que começar, imediatamente, a entender a mecânica estranha, deslubrificada, de um corpo que antes te servia tão bem, e agora, com ele, somente com ele, te cabe então continuar a viver... Sim, eu sei que você está longe desta fase, a última das fases, afinal, você nem fuma, teu corpo é de uma agilidade incrível, né? Só que não importa, isso não faz a menor diferença, não tem uma idade certa pra todos, é muito particular, entendeu? De repente vem à tona... Ou é a consciência desta fase que é repentina? Não sei, não sei, na verdade, estou tentando tomar teu tempo de todas as formas possíveis: te amedrontando, antecipando tua velhice, te chantageando com a minha, enfim... Jogo sujo, claro, alguém pode saber o que é jogar limpo quando tudo que mais se deseja na vida está te abandonando? Impossível, impossível... E não venha me dizer que não estou te atingindo, pois já te peguei várias vezes cismado com o espelho. É, com o espelho, sim... Pensas que não te observo? O tempo todo estou de olhos abertos em você. Pensas que durmo, que vejo televisão, que ouço música, que escrevo ou me preocupo com meu filme? Quá-quá-quá! Nunca estou pensando ou fazendo nada em que você não esteja previamente inserido, nunca! Eu te enquadro em qualquer canto da casa, é um olho cá, no que faço, e outro lá, por onde tu te movimentas. Teu entra e sai, teus muxoxos, teus pormenores corriqueiros... Fica comigo, que irei fazer da minha vida quando não puder no fim do dia te apertar entre os braços assim... Assim... Olha que merda, já estou lacrimejando de novo. Fica, meu amor, nunca pude viver um querer desta forma, deixá-lo distender-se por si mesmo, me afogar num beijo como em ti me afogo e esquecer toda a sede que tive desde menino de beijos que jamais vinham em minha direção... Ah, sei o que estás a pensar: tudo clichê barato que ele aprende com esses romancezinhos que abarrotam nossas estantes, e é, é mesmo, são clichês roubados de romances, mas e daí? Que importa? Estou te implorando pra ficar, fica comigo... Olha, às vezes, quando abro a primeira gaveta do nosso armário, penso com ternura naquela vez em que lemos juntos A Linguagem Perdida e você me chamou atenção pra idéia de felicidade daquele personagem, felicidade que teria seu ápice quando ele, o Phillip, pudesse ver suas cuecas e as do amante guardadas juntas, misturadas a ponto de não poderem ser reconhecidas. Você, então, disse com orgulho: entre nós isto é tão natural. Sim, Johnny, tão natural que quando abro esta gaveta preciso pensar direito e separar: não, estas menores são do Johnny, as minhas são aquelas ali... Preciso medi-las com os olhos, já que as cores e modelos são idênticos, porque é sempre você quem escolhe e eu gosto de suas preferências, de suas escolhas... Temos tudo isso, amor, e você quer jogar fora! Por quê? Por que, Johnny? Uma maldade dessas vai levar séculos e séculos pra se dissipar... Não faça isso com tudo que vivemos e ainda podemos viver juntos, por favor, não faça... O que é, está chorando? O que foi? Por que esconde o rosto assim no meu peito? Pra que eu não te veja chorar? Bem... Mas... Se te escondes assim tão agarrado a mim é porque vais ficar, não é? Está arrependido, vai desfazer as malas e ficar? Deixa eu te olhar um pouquinho nos olhos, só um pouquinho... Estou raciocinando certo? Este balançar de cabeça quer dizer um sim, é isso? Você vai ficar comigo? Ah, eu sabia, meu amor, eu sabia...!

(Este texto é o último conto do livro URBANOS, prêmio COPENE/BRASKEN de 1997)

domingo, julho 15, 2012


Depois do Fazer Poesia na Bahia, agora é a vez da prosa. Em Fazer Ficção na Bahia estarão presentes Állex Leilla (autora do romance Primavera nos ossos, selecionado pelo Programa Petrobras Cultural; doutora em Literatura, professora da Universidade Estadual de Feira de Santana), Laura Castro (premiada com a bolsa Funarte de criação literária, transformou textos publicados em blog no livro Cabidela: Bloco de Notas, lançado ano passado), Mariana Paiva (também jornalista e mestranda em Cultura e Sociedade, lançou seu primeiro livro, Barroca, de crônicas poéticas, em 2011) e Tom Correia (reconhecido ficcionista, autor de livros como Sob um Céu de Gris Profundo, editado com apoio de edital da Fundação Pedro Calmon, vinculada à Secretaria de Cultura do Estado da Bahia), mediados por Luciene Azevedo, doutora em Literatura Comparada, professora do Instituto de Letras da Universidade Federal da Bahia, pesquisadora de prosa literária latino-americana a partir dos anos 1990.

Fazer Ficção na Bahia: 17 de julho (terça-feira), 18 horas

Onde: Cine-Teatro Solar Boa Vista (Parque Solar Boa Vista, s/n, Engenho Velho de Brotas – Salvador/BA)

Entrada Franca
Realização: FUNCEB/ SecultBA

domingo, julho 08, 2012


— Ainda bem que você veio me visitar. Vamos secar todas as garrafas. Está uma tarde ótima para se encher a cara. O melhor dos domingos é a possibilidade de beber até cair. Tão triste e chinfrim acordei. Comecei a reler Orientação dos gatos, pra ver se algum raio perdido de luz matutina vinha se abrigar no meu colo. Mas a vontade é de sair por aí jogando bomba-cabeção nas garagens alheias.
— Cadê teu namorado?
— Viajou, a trabalho. Volta na próxima sexta.
— E você não quis ir com ele?
— Não pude, bem que eu queria, tenho tanto trabalho amanhã que fico cansada só de pensar.
— Incrível quanto a vida vista daqui é linda...
— Linda por quê? Por causa do mar e dos barcos atracados no Porto?
— Sim, por causa deles.
— Não sei... Eu tenho problemas com essas idas e vindas. Sempre multiplico os barcos e fico mais triste ainda pensando em quantos barquinhos e navios existem a ba-lançar, em quantos portos, cidades antigas feito esta, balançando, balançando, ao morrer do dia. Ou partindo. Ou ancorados. Enquanto na nossa pequenez vemos apenas esses, que não são nem metade de todos os barcos e navios que existem por aí.
— E o que há de errado em ver um pedaço de tudo?
— Nada, por certo. Todavia, eu sinto dores de cabeça.
— Está parecendo o Pérsio com os trens de Portugal.
— Qual Pérsio? O de Caio?
— Não, o de Cortázar.
— Ah, só gosto do de Caio.
— Mas você não acabou de dizer que voltou a ler Cortázar?
— Sim.
— Então?
— Tem um Pérsio em Orientação dos gatos?
— Não, Luísa, tem um Pérsio em Os prêmios.
— Mas eu não voltei a ler Os prêmios...
— Como você é embirrenta.
— Claro que não... Embirrenta por quê?
— Se acaba de citar Pérsio com a história dos trens em Portugal!
— Eu? Não conheço nenhuma história com trens em Portugal...
— Luísa, agora, você já está chateando...
— Desculpe, foi inevitável. É tão bom te desmentir.
— Está bem, vou fingir que não estou ouvindo tal aberração.
— Nossa, que palavra forte, Michel.
— ...
— ...
— Enquanto você secava os cabelos, estava ali na janela, tomando café e pen-sando em como é inapreensível e passageiro tudo aquilo de belo a que nossos olhos põem luz e tentam aprisionar. Quer dizer, os olhos tentam, mas não adianta, escorrerá numa fração de segundos. E jamais conseguiremos reter aquele êxtase outra vez, o êxta-se do primeiro momento, daqueles dias mágicos em que vimos as coisas pela primeira primeiríssima vez. Só de pensar, já me sinto velho de novo. Velho e, de certa forma, um pouco morto.
— Agora você é quem está parecendo alguém...
— Quem?
— Bob Smith: yesterday I got so old I felt like I could die, yesterday I got so old It made me want to cry...
— Tudo bem, gosto dele. É um tempo palimpsesto mesmo, que fazer?
— Palimpsesto?! Isso é uma referência a Gore Vidal?
— Não. Estava me referindo ao suporte antigo.
— Ah...
— Você fica bonitinha imitando Robert Smith com a cabeça pra lá e pra cá...
— Fico?
— Fica. A propósito, o seu inglês melhorou muito...
— Você acha?
— Acho.
— Pena que foi um pastiche improvisado, se não teria caprichado na maquiagem, arranjado uma boa peruca...
— Mas foi um pastiche sutil, eu adorei, afinal, nem tudo é questão de máscaras...
— Hmmmm, estamos filosóficos hoje, hein?
— Pois é, estamos.
— ...
— ...
— Está sentindo este cheiro de sabão em pó?
— Estou.
— Aqui venta bastante.
— É verdade...
— ...
— ... [...]

IN:_Primavera nos Ossos. Salvador: Casarão do Verbo, 2012. Últimas páginas.

terça-feira, julho 03, 2012



Nesta quarta-feira, dia 04/07, às 15h., no Cine-Teatro Solar Boa Vista de Brotas (Engenho Velho de Brotas), palestra com JOÃO FILHO, Ruy Espinheira Filho, Vladimir Queiroz e Ondwale, sobre o processo de FAZER POESIA na Bahia. Compareçam!

domingo, julho 01, 2012


- Alguma coisa que me apaixona... Vai e vem... Como as roseiras dos meus pais. De madrugada, eu acordava e ficava olhando pela janela a luz cinza-prata-branca da lua sobre elas, o vento da madrugada... lá e cá... Era como se olhasse o paraíso de dentro do meu quarto, tão perto...
- Teus pais tinham roseiras?
- Tinham... ainda têm, quer dizer, mais ou menos: é que meu pai mora na mesma casa até hoje... Vou te levar lá pra conhecer...
- Que tipo de rosas elas dão?
- Todos os tipos de rosas, que nem você...
- Por isso que você é poeta assim?
- Não sou poeta...
- E por que começa falar desse jeito então?
- Por causa do teu cheiro que me leva de novo pra lá...
- Meu cheiro? Que cheiro?
- Cheiro de rosa levada pelo vento...
- Hmmmm... romântico você, né?
- Não, realista... Vem mais pra cá...
- Assim?
- ...
- Ai... Não morde...
- ...
- Você é doido... Vai acabar rasgando minha roupa...
- ...
- O que você quer, afinal?
- Adivinha!

Em Não se vai sozinho ao paraíso, primeiro romance que integra a trilogia místico-erótica de Állex Leilla — cujo centro são as micro-...