sexta-feira, janeiro 27, 2012


Meu último cineasta vivo, Theo Angelopoulos, responsável pelos poemas em película A eternidade e um dia, Um olhar a cada dia e Paisagem na neblina, faleceu dia 24/01, vítima de uma moto desgovernada. Não era um cineasta qualquer. Sentirei muita falta dos ângulos com que ele filmava a delicadeza e a melancolia do mundo. Tenho todos os motivos para não mais ir ao cinema.

sábado, janeiro 21, 2012

De mar & amor, in: Margens das Letras, coletânea de contos de alunos de Letras, 1998.


[...]Parou na praia e escutou as ondas chamando-o como numa cantiga. Despiu-se e foi.
Entregou-se às avermelhações de cores que se metamorfoseavam dentro das pes-tanas cerradas pelo mergulho. Quando abriu os olhos, deixou-se ficar na claridade das estrelas e da lua, que penetrava o escuro das ondas.
Mesmo depois, quando já estava deitado na areia, de olhos fechados, sentindo o friozinho que dá no corpo molhado, tentando o impossível, que era seguir fluindo, sem pensar em nada, a claridade do céu ainda golpeava, quer com raios de luzes estrelares, quer com raios da lua, que naquela noite se fazia crescente e nítida.
Assim, tudo parecia mais perigoso. Como que ameaçando, caso ele voltasse a querer se enfiar inteiro nas suas ondas.
Ah, aquelas ondas se multiplicando num horizonte de penumbra. Elas ocultavam mundos escorregadios, pedidos de socorro, urros de alegria, e fantasmas também. Al-guns fantasmas penetravam junto com a claridade ou eram formados por ela. Desenho de bocas e corpos nus de meninos, de cera, de porcelana, de grafite, de brinquedo, mas, de repente, nesse exato minuto, ele abre os olhos e percebe: de carne viva também.
Ele teve medo e desejo de retornar ao mar. De perder os sentidos dentro dele, de nunca mais pisar na areia. Pois acima de tudo estava triste, tão triste se sentia que dava trabalho se movimentar. O mar, ele escutou intranquilo, o mar o chamava de volta, pra sempre, venha.
Não, ele disse, não quero morrer. Precisava se movimentar dentro das sensações esquisitas: vontade de vida e vontade de morte entrelaçando-se. E a vontade de amar também, a vontade louca de amar se estendendo, feito um polvo, cada braço dela cheio de dentes ramificando-se pelo corpo. Assim como sentia atração e repulsa pelo chamado do mar, tinha medo e desejo por aquele cara, pela loucura de gostar demais e não poder se desprender da imagem do outro, do cheiro do outro, do que viveram há tão pouco tempo juntos.
Foi regressando pra casa devagar. Olhos cansados, corpo úmido. O sal, diria aquela escritora, lavando em segredo a alma maltratada. A energia do sal marinho cum-prindo sua função na pele. Era preciso dar tempo pra energia lhe adentrar inteiro e renová-lo outra vez.
Mas, quando no quarto, tentou dormir em vão. A voz do outro vinha soberana: "há rios de águas tragicamente revoltas e fundos de intermináveis abismos. Rios que escondem a morte em cada trecho de seu enganoso percurso, bem mais assustadores que o mar".
Não importa, ele disse, vá embora, não quero mais saber de você.
A voz do outro como que levitava por dentro, carregado-o por ondas quentes que ora subiam ora desciam o corpo cansado no colchão. Novelos de funduras e fluências. Ia assim, solto num mar diferente, corpo esquecido, banhado de luz mínima, as primeiras luzes da manhã. As mãos, estendidas na cama, não estavam na cama, remavam, tocavam a água como se capazes de vencer qualquer correnteza. E nesse ir quase que inerte sobre a correnteza absorvia em todo o seu ser ventos e ares que por ali passavam, amadurecendo a noite, transfigurando o tempo. Sangue dilatado, meio sorriso nos lábios, e oxigênio entrando nas narinas. Vou esquecê-lo, pensava sem forças, vou esquecê-lo pra sempre. [...]

terça-feira, janeiro 03, 2012

O sol que a chuva apagou, Ed. P55, 2009 (trecho)


[...]
Acendo uma vela azul, um incenso de Noz Moscada. O Matheus me mandou cinco caixas dele. Cada uma tem 10 varetinhas. Você gosta deste cheiro, Ian? Posso acender um a um, dia-a-dia, se você me responder sure, honey, naquele seu jeito rápido de falar mal abrindo a boca, yes, Thiago, você diria como quem está de saída e volta correndo porque esqueceu algo importante, motor do carro ligado, itinerário previamente decidido, chaves, carteira, sobretudo, você diria, it´s fine, dear, jogando um beijo ou simplesmente confirmando: I do. É bom este incenso? Estou meio resfriado pra saber. Ligo o violão, vou lembrando e tocando, primeiro, aquela tua preferida da Chrissie Hynde; segundo, Giz, da Legião; terceiro, Such a woman, do Neil Young, mudando woman pra man, como você fazia, no chuveiro; quarto, The one I love, do R.E.M. Abro uma garrafa de vinho: se houver mesmo aquela história de vida eterna, esteja por aqui e brinde comigo, meu bem. Sim. Meu querido. Duas taças. Essa é pra quem eu mais amei no mundo. Essa é pra alguém que ficou pra trás. Sem você eu não conseguiria chegar até aqui. Jamais. Há milênios teria desistido. Vem de ti a força que me faz pisar forte no chão, seguir em frente, não fraquejar, não cair. Yes, I know. Não, não desapareça. Quando começar a chover de novo, quero estar de mãos dadas contigo. Fecho os olhos, tento de todas as formas ver seu rosto, sentir seu corpo, próximo, colado a mim. Mas não, não é o Ian, é a Maria Alice, no início da quadra, irritada, reclamando que alguém esbagaçou a caixa com pedaços de giz coloridos que ela roubou da escola pra jogarmos amarelinha. Desenhamos na calçada da quadra inteira. Você gosta de mim, Thiago?, ela perguntava, os olhos escuros, brilhantes, você quer ser meu amigo? [...]

domingo, janeiro 01, 2012

Henrique (romance), Ed. Domínio Públicco, 2001 (trecho)

[...]
Passado o tempo das luzes, descobri que, esbagaçado no banco de um carro, eu não podia ver o mar claro, calmo e ululante. Festim de azul e verde e até amarelo-barro, um tanto gritante, é verdade, pois surge quando o sol raia depois de horas de chuva, e muita da sujeira da cidade que cobre a areia das praias contribui pra formação dessa cor estranha. A que mais silêncio me causava. Podia tentar até a exaustão que não conseguiria nunca removê-la de mim. São Conrado, Pepino, Joá. A mão de meu pai me levava — no princípio era sempre ela — e eu não aceitava retornar pra casa antes do sol se pôr.
Baratas fazem do meu resto de carne um farto banquete. Baratas? Vermes? Ou impressão? Não sei. Vermes que conscientemente odiei me devoram. Não falo dos ratos porque não os vejo. Mas devem existir porque tudo isso faz parte da miséria, entende? Os seus braços, um longo porto, a quilômetros de mim, radiantes. Num grande espaço de tempo minha vida foi tristeza agulha fina perpassando a pele. Não importa, agora não quero me importar. Me concentro e vejo a noite dentro das janelas acesas; vejo mulheres entre cebola alho óleo maridos e filhos pra jantar; vejo os televisores e o acompanhar patético dos olhos, mortos de qualquer alegria ou viço real de vida, todos muito bem nas salas de estar. É, longe de nós, meu amigo, todos creem viver verdadeiramente, mas... não sei.
Me interesso pouco pelas pessoas, poucas pessoas me incomodam, nada quero trazer pra junto de mim neste canto de mundo, que, como vê, não é bem um canto de mundo, mas apenas meu fim. Embora eu não queira o fim.
Me incomodam visões de flechas soltas no ar.
Dou de me lembrar de sua pica, Vic — e isso é puro deleite —, ereta, linda, a mais bela dentre todas as picas que um homem na Terra pode ostentar. Mais bela até que a minha, reconheço. E não é nada fácil, garanto-lhe, reconhecer. Dou de me lembrar de como você a esfregava contra a minha e, suspirando, ia subindo ao alcance de minha boca. Mas perco o momento em que você também me abocanhava. Sua cara retendo meu gozo, minhas mãos te apertando os cabelos. Perco, perco. Vago sem tempo sobre nós e lembro, com pesar, quanto de inferno eu pacificamente suportei, acreditando que um dia, uma porra de dia enfim, tudo ia ficar bem entre todos os homens e planetas e reticências, e não somente na paz de nosso quarto, de nossos corpos depois do amor.
Me lembro de qualquer coisa azul — os olhos do meu companheiro, vivos, leais? Não, não, os seus olhos são, sempre foram verdes. Um firmamento de primavera? A banheira onde, quando bebê, me lavavam? Não, acho que a banheira era branca... Talvez a cor que totaliza toda essa distância. Branco, branco, branco. Sim, quando recordo é porque estou distante.
O pior de tudo é que não há cheiros e quase se pode sentir Deus. Eu quero andar e não sou movimento. Ágeis são os arbustos, são as nódoas, são as faltas de cheiros, meu corpo não. Primeiro me dei conta disso — do corpo — que ruía a cada quarto de hora, depois percebi, aterrorizado, as formigas, rodeando-me como se faz com o alimento. Histérico, nos instantes iniciais ainda achei que reuniria forças pra quebrar a inércia, vencer.
Não consegui.
Tua mão veio viva afastando os insetos de mim. Limpou um resto mínimo de sangue, pôs rosas e perfume e me vestiu com uma camisa de seda clara.
Ri, grato a ti por tanta generosidade. Saiba que estarei sempre. Achei teu pranto extremamente belo caindo em meu rosto morto. Devia ser quente a tua dor, fazia a das outras pessoas indiferente, nula. A milímetros de mim, você arfava em desespero. Não te senti como antes, minha faculdade consistiu no verbo ver, segunda conjugação, transitivo direto. Não lembro mais.
Vi você me guardar no vão e a madeira comer minha liberdade.
Falo como corpo porque corpo preso fui depositado.
Os grãos de areia, as velas, os vermes. O regresso. Não seria exatamente areia, mas barro pútrido, enojante.
Imaginava que o alimento fosse vivo, que cada mastigar sofrido fosse uma alegria de transformação próxima. Mas não, a dor de ser absorvido é total, é cruel e leva parte dos sentidos. Abomino-me em retalhos. Eu me odeio mordido, rasgado, mastigado, comido. Pelos, gosma, meus dentes!
Nenhum cheiro exala, nenhum formigamento. Meu sexo, minhas mãos. Eu não conhecia esses tipos de vermes, só aqueles que levam parte do joelho. Lia sobre bichos que dão em água parada, matava muitos ratos quando tinha dez an.....h! Jesus! O cheiro morno da virilha pra sempre perdido. Minha unha caindo vagarosa na madeira, minha boca, eu não tenho boca!
É preciso um cigarro, um café.
Um choque elétrico.
Ainda faltam as veias. Ali, falta parte do nariz e um resto de coxa. E essa posta de carne verde, aguada, donde fazia parte? O sangue endurecido. O sangue é um requinte, quem virá sugar? Me contorço, não sei do tempo. Deve ser longo, mas não o meço mais. Incho. Inconformismo. Não voltaria a comer se tivesse novamente boca, dentes, língua, mas ainda assim quero meu corpo!
Tapa na cara.
Dentes rolando.
Baba.
Quero meu corpo.
Escuridão.
Por favor, me soltem, me deixem.
Um corte vertical no planeta.
Que todos sangrem, que se fodam, que não reste migalhas de gente.
Não é possível. Então sou isso?
Corro.
Carne moída.
Odeio. Odeio.
Subirei no topo.
Picadinho.
Mal, mal, mal.
Formigas estranhas, estranhas.
Quero tudo no lugar de antes.
Misérias se multiplicam.
Demônio.
Em toda parte: baratas.
São os bichos que mais odeio.
Eu que comia vegetais. Eu, que não andava descalço debaixo do sol por muito tempo. Eu com minhas rugas.
Eclipsado.
De mal com Deus.
E com Jesus Cristo.
Eu corro.
A mancha escura no meu quadril.
Minha pele, minhas nádegas, onde o Vic irá deslizar?
Pode ser um câncer, cara.
Eu tinha medo de câncer no pulmão.
Meus olhos eram negros... sangue AB, Rh +. Herança do meu pai.
Minha mãe nunca virá.
O banquete.
Água luz sabão.
Um dia uma puta me seguiu no Leblon. Olhava pra trás lhe sorrindo, quando por fim entendi: um homem, um homem debaixo da fantasia de se fazer exageradamente mulher.
Não me encantavam homens assim.
Tudo bem.
Não vou chorar mais.
Que se danem os cílios, que se danem os cabelos.
Posso sorrir um pouco.
Não me apavorem.
Dancem comigo. Um tango, ou dança antiga de ciganos.
Boceta!
Por quê?
Quero meu corpo.
Macho meu ele foi, homem a quem chamei de amigo.
Não suporto mais esse crânio exposto.
Por favor, um lenço. Lilás.
Um cara me esmurrou no peito, uma vez.
Galeão, Santos Dumont.
O barulhos de seres metálicos pelo ar.
Jacarepaguá.
Vozes em alto-falantes.
Passageiros com destino ao inferno, com escala no desespero e na miséria profunda, por favor, dirijam-se ao portão de embarque, e boa viagem.
Arame farpado.
Pois vou dar o troco pra aquele otário.
Irritação no estômago.
Tome a limonada, meu filho.
Não há.
Pode ser um sonho.
Vic, me espere na saída da rua, passo logo que a aula acabar.
Ele estudava língua alemã e amava escritores franceses.
O tempo. O tempo. O tempo.
A chuva podre sobre as cascas das frutas. Sobre as rosas brancas. Sobre os remédios.
Me ofertam flores. Vou cair em choro. Flores pra quê, meu avô?
A primavera me dá saudades, o leite me dá saudades.
Ossos.
Uma casa bonita, cheia de espaços.
O momento mágico de desgrudar do corpo dele e adormecer.
Sítios. Aeroportos. Calçadas. A corrente fria na cara.
Copacabana princesinha do mar.
Gozo, esperma, fluídos. Línguas. Espáduas. Coxas. Ânus.
Pai-nosso-que-estais-no-céu-santificado-seja-o-vosso-nome.
E flores, flores, flores. [...]

Em Não se vai sozinho ao paraíso, primeiro romance que integra a trilogia místico-erótica de Állex Leilla — cujo centro são as micro-...