quinta-feira, dezembro 22, 2011

Felicidade não se conta - vencedor do 20º Concurso Luiz Vilela de Contos



Às vezes, procuro pelos meus olhos quando eles não estão juntos aos seus. Encontro-os, diversas vezes, boiando naquelas poças de chuva por onde saltaram ontem nossos pés descalços, frágeis patas de gente. Talvez essa rasidade exista para nos conter ou nos distrair, não sei. O que você sabe sobre a rasidade da chuva?

Ainda havia algumas réstias quando ele se aproximou e deixou que eu capturasse os contornos da face alva, cônica, do olhar vago, azul; pude ver o indefinível escapando de seus movimentos, juntando-se a mim. O feixe de luz, subitamente tão vivo, me assustou. Apertei os olhos, tentando aproximá-lo mais do campo de visão — quem era? Forçar as vistas daquele jeito me doía na fronte, talvez fosse melhor desistir.
É ele, pensei, gostaria muito que fosse ele. Ao mesmo tempo, senti a inquietação a um palmo: e se for, adiantará? Como iremos retê-lo? Naquele instante, não tinha como saber. Deveria ser a segunda ou terceira vez que o encontrava, sempre rápido, rumo a algum objetivo. Entretanto, parado na minha frente, tempo-espaço se fundindo num só desejo — o de tê-lo pra mim —, não, jamais o havia encontrado assim.
Eu sentia dores nos olhos desde a infância. Naquele tempo de pouco saber, a cegueira deveria ser semente, quem sabe botão. Me sentia tonto, a dor de ver, capturar completamente aquele cara, formigava o centro do mundo. A fim de aquietar os olhos, eu os fechava por uns instantes, enquanto impulsionava lentamente o corpo, aqui, ali, num ritmo bobo de quem medita em pé. Tratava-se apenas de alcançar algum equilíbrio com a repetição vagarosa do mesmíssimo movimento, quiçá, do mesmo ritmo: dó-ré; ré-dó; mi-fá; fá-mi.
Ele deve ter estranhado minha forma excêntrica de estar no mundo, porque me cercou, preocupado:
— Ei! O que está havendo? Você vai desmaiar?
Bárbaro aquilo. Até hoje penso no disparate daquela fala. Como se fosse possível saber. Imaginemos o desenrolar de um diálogo tão estapafúrdio:
— Ei, você vai desmaiar?
— Quem, eu?
— Você mesmo!
— Ah, sim, desmaiarei em trinta ou quarenta segundos, obrigado por perguntar.
Mas não, não escarneci sua falta de bom senso, em vez disso, deixei que nossos corpos de aproximassem, aproveitando sua disposição em me ajudar.
Lindo, eu o achei. Os cabelos desalinhados, o corpo delgado, uns fiozinhos ne-gros, ralos, poucos, em seus braços. A camisa florida estava aberta no peito, era grande pra sua magreza, escorregava pelos ombros, e eu vislumbrava, antes que ele a ajeitasse outra vez, ora o esquerdo, ora o direito. Ao endireitá-la, de segundo em segundo, ele trocava os libretos de mão, abordava pessoas. Seus movimentos eram uma dança que me revelava algo até então obscuro: um excesso de demência ou alguma loucura não-tocável. O quê, meu Deus? O quê?, quis em vão saber.
Meus olhos ardiam muito. A percepção tardia jogava tudo no centro de uma só vez: os últimos feixes de luz a serem usufruídos, a certeza queima-roupa da cegueira, os ombros nus dele, do grande amor, aquele que já julgava perdido pelo tanto que vivi a esperá-lo sem sequer sabê-lo existir, o medo cada vez maior do futuro.
Perguntei o que vendia.
Ele disse:
— Poemas.
A voz me paralisou em meio ao fim de um mundo velho — o que eu era, o que me tornei — e o começo de um novo, desconhecido.
Pequeninamente, busquei de novo seu olhar:
— Você se parece com o Morrissey — falei, e imediatamente tive receio de que ele não compreendesse a referência, o que seria um prejuízo tamanho pra minha paixão abrupta.
Mas ele respondeu demonstrando interesse:
— Como sabe que me pareço com o Morrissey? Você não é cego?
Ainda não, pensei, feliz por ele não me perguntar quem era o Morrissey, ou, pior, vir com a clássica pergunta idiota: você quer dizer Jim Morrison, do The Doors? Não havia confusão de referência que me irritasse mais. Convenhamos, que semelhança há entre os dois? É preciso, antes, ter um sério problema auditivo pra confundi-los. Além disso, não há um Jim Morrison, do The Windows, por exemplo, capaz de justificar esse acréscimo do nome da banda ao final da pergunta. Todavia, não era raro me acontecer ser tragado pelo raciocínio sublime de alguém que não conhecia meu cantor preferido, mas, sim, o outro, do The Doors. Ainda não sou cego, quis gritar, mas me contive. Posso vir a ser completamente, desde que você fique do meu lado, guiando-me com os seus azuis.
Aquilo era uma bobagem, hoje sei. As réstias ali estavam, serviam ora de engano, ora de orientação. Se forçasse um pouco, ignorando tamanha dor na fronte, poderia, inclusive, perceber que o azul dos olhos dele era um tanto acizentado. Quando conseguia captá-lo em meio as bolhas, ora coloridas ora brancas, pipocando ao redor, não tinha plena certeza da variação exata, azul-marinho ou lilás?
Expliquei-lhe que não era de todo cego, percebia as coisas ora envoltas em som-bras, ora momentaneamente desaparecidas, não podia precisar, por exemplo, se ele os-tentava fios ralos nos braços ou se estava sujo de carvão. Se trazia a camisa florida ou manchada de vermelho, se tinha os olhos azuis ou lilases. Enfim, confusões dessa natu-reza. Obviamente, ficava sempre com a opção mais lógica.
Ele respondeu, grave, que não estava sujo de carvão, além do mais, frisou, olhos lilases não existem, de onde tirei tamanha tolice? Então, riu. Um puta sorriso se abriu no seu rosto. Aos gritos e berros, tudo na praça girou e me entregou a ele. A essas alturas, era evidente: já estava amando-o, embora não estivesse preparado pra felicidades tão suaves. Passara meus dias buscando formas de compreender, lidar, quem sabe vencer a depressão. E depressão era tudo o que me rondava, tirando o contorno real dos seres, das coisas, inserindo-os em invólucros fugidios, um molde primeiro branco-turvo, de-pois, cada vez mais escuro.
— Parece que somos de lugares diferentes — murmurei.
Ele respondeu que vinha do Norte, do Amapá.
— Mas com essa cara de europeu? — questionei.
— Como assim? — ele estranhou.
— Se você vem do Norte, por que não é índio?
Ele escarneceu meu raciocínio tosco:
— Por que não sou índio? Boa pergunta, deixa ver... Pode ter faltado matéria-prima na hora da mistura ou fugi do laboratório antes de terminarem a experiência...
Ignorei a ironia, disse:
— Seu sotaque é bonito...
Sei bem que ele sorriu, mesmo sentindo as réstias afinarem quase completamente, tenho absoluta certeza de que ele sorriu ao responder, desconfiado:
— Você acha? Não pode ser. Ninguém gosta do sotaque do Norte.

* * *

E então, de repente. Pensar na magia dessa quase frase. É possível jamais ter havido magia alguma, só o campo estreito da linguagem escapando. Não faz mal, o cer-to, justo e límpido é: então, de repente, o mundo foi virando bolas de fogo velozes. De-pois, sombras. Depois, brilhos fugazes. E por fim, nada. Andava com a mão dele no meu ombro, ele já vivia comigo. Nenhum medo, nenhuma revolta, mas muita saudade do seu olhar. O azul-escuro. O acizentado. O lilás impossível. Às vezes, passavam umas rajadas em minha cabeça, fazendo barulho de helicóptero ou aviões. Como por encanto, o rosto dele surgia, a voz paralisando, o queixo de bigorna. Eu pensava: se o vejo, não estou cego... Mas, de fato, o vejo? Pronto, bastava duvidar pra escorregar na vaguidão outra vez. Mas o que há? Estou louco? Sim. Só podia ser.
Sentávamos na praça, eu queria detalhes:
— Que roupa você está usando, Maurício?
— Roupa de chuva. Como você.
— Como são?
— Nossas roupas? Escuras. De mangas compridas. Pesadas. Você não sente?
Pus a mão no peito dele:
— Por dentro do casaco você usa outra camisa.
— Sim, como você. A minha é branca, a sua é turquesa.
Achei graça:
— Por que você me vestiu de turquesa?
— Sei lá... Porque sim. Qual o problema?
— Nenhum.
Penso bobagens sem ter consciência de quanto elas salvam o dia. Inutilmente vi-vido, o meu tempo, tão caro, tão vazio, perdido com pensamentos que somente dias, meses depois, revelam sua verdadeira leveza.
Não sei se ele riu, quando me abraçou forte. Cantarolou alguma coisa de Chrissie Hynde: I go to sleep, sleep... and I imagine you there with me... Canto de cabeça, ele disse, você se lembra da letra? Colou o rosto no meu. Cheiro de sabonete de ervas.
Antes, ele disse prendendo minha orelha entre os dentes, quando saía pra te en-contrar, invariavelmente pensava: terei de lhe pedir em casamento. Ficava muito tenso, não sei se chegava direto e ia dizendo: case-se comigo, Pedro Jaspe. Ou começava de-vagar: me conte sua vida, seus planos, pra ver se me enquadro nela, neles. Queria lhe propor que corrêssemos atrás de tratamentos pra sua visão. Mas sequer sabia se você queria falar disso. Não conseguia escrever nada antes de lhe ver, metáforas, alegorias, rimas, ele me garantiu, não havia.

* * *
Se um olho alheio e uma voz onisciente pudessem nos observar nos primeiros encontros, provavelmente, narrar-nos-iam assim: um deles vinha, calças dobradas nos tornozelos, camisa ensopada, colada à pele, sandálias de couro, lábios roxos. As pontas dos cabelos voavam no meio da chuva, do vento. A chuva fina, compacta, o vento forte, tenor, feito chicote, o empurravam pra frente. O outro não vinha nem ia, apenas esperava ser alcançado, parado junto ao tronco de uma árvore. Não tinha paciência pra atravessar com cuidado o calçamento do parque, adiantar o encontro. Tomara um tombo minutos atrás, por isso, estava sujo de lama, pedacinhos de folhas amarelas no cabelo, gosto de terra na boca. O outro e mais ninguém no mundo sabia: por todo canto poderia haver charcos alaranjados, imóveis, à espreita. O que mais detestava no tempo chuvoso: os charcos espreitando-o, bocas escancaradas pra atraí-lo à queda, ao constrangimento.
A camisa do segundo — aquele que esperava ser alcançado — era um lodo só. Embora ele não pudesse enxergá-la, sabia que estava suja. Sentia nojo de si, e, orgulho-so, pensava que se o amigo caísse também ficaria em estado igual ou parecido ao seu, o que diminuiria o impacto de um corpo enlameado no outro apenas molhado. Sentia-se desgraçado, tolo desgraçado, pra que encontros em dias de chuva?
O amigo, porém, não caiu, em vez disso, abraçou-o:
— Tomara que amanhã faça sol. Maceió está se desfazendo feito açúcar...
A língua foi ao alcance do amigo, que recuou, preocupado.
— Você está me beijando na boca, em público, Maurício?
— Estou. E daí?
— Sei lá, com toda essa violência aí contra os gays...
— Ah, sem essa, Pedro Jaspe, estamos só nós dois aqui. Além do mais, não quero saber de violência, você me faz feliz.
Pedro riu. Ele o fazia feliz. Isso era bom. Beijaram-se, entretanto, voltaram a se separar, rápidos: um carro vinha pelo lado direito do parque, devagar, como se fizesse a ronda, faróis acesos quando nem era noite ainda.
— Quem é? — um deles murmurou, sem poder visualizar, irritado pelo desenlace brusco.
— Ninguém.
A chuva engrossou. Começaram a andar lado a lado.
— Você está tão calado! Dá até medo.
Pedro pensava em ações ou palavras capazes de desfazer a impressão de homem distante. A impressão — Maurício tratou logo de adjetivar — era de pintor enclausura-do. Pintor jabuti.
— A tela é o escape — pronunciou à toa. — Me diga, eu te aborreço? — quis saber.
Pedro achava o amigo meigo. No começo, sentia até pudores diante dele. Pudo-res pelo que julgava dentro de si próprio uma alienação estúpida, um desejo aleijado, um não-alinhamento de palavras. Sentimentos irremovíveis, é verdade, mas que acabariam se diluindo com o tempo, acreditava. Queria, por vezes, dizer algo belo ao outro, entretanto, constantemente fracassava. Não conseguia avançar no muro estreito dos primeiros encontros.
— Quer ficar só? Se quiser, vou embora, a gente se vê noutro dia.
Digamos que complexo entre eles era/é — embora isto constitua um clichê filho da puta —, sobretudo no início, digamos que complexo é/era o mundo de caracteres de um (o poeta) chocando-se com o de borrões do outro (o pintor).
— Pra eu ir, você terá de dizer sim ou não. Pelo silêncio não posso deduzir.
Pintor medíocre, ele se sentia. Rostos, mãos, pés, peitos, ombros, nádegas, coxas, quadris. Eis o universo de sua pintura. Nada mais. Caminhava exausto, rebatendo por dentro: medíocre, medíocre.
— Fale comigo, Pedro Jaspe.
— O quê?
— Qualquer coisa.
— Te amo.
Well, eis o nosso começo.
Com certeza, neste instante, a voz emudeceria, o olho perderia o foco, não seria possível continuar. Felicidade não se conta. Pedrinha rara colada ao fundo de um calei-doscópio, subitamente, atingido pela luz. É impossível aprisioná-la, dissecá-la, encher um parágrafo com ela. Entretanto, maldição!, o que digo? Só posso saber que fomos felizes quando tudo já se encerrou em mais um ciclo vago, mais uma cena-neblina de um tempo perdido.
Aqueles primeiros momentos de felicidade, chuva, muita chuva, e certa inquie-tação. Naqueles dias, Maurício me leu uma anotação solta, dizia: o amor inclui outra vez medos esquecidos, mofados dentro da gente, o amor os pega, expõe novamente tudo ao sol. Isso, ele explicou, porque quando nos conhecemos, na semana seguinte, o tempo fechou completamente em Maceió. Ele enxergava alguma coisa mágica aí: nos conhe-cemos, ficamos juntos, fazia um sol excessivo, em seguida, a cidade entrou num período chuvoso imprevisto. Mas que poderíamos extrair da temporalidade senão pequeninas impressões?
Nem tudo, entretanto, era embalado pela chuva, também aconteciam impasses ou conversas esdrúxulas. Às vezes, ele me questionava a sair do casulo:
— Jamais adivinho se você quer beijos ou puramente silêncio.
Noutras passagens, notava-o desolado, arranhando-me, como se fosse um gato triste. Eu me desconcertava:
— É que me perco, Maurício.
— Ah — ele repetia. — É que você se perde. Entendo...
— Podemos ir a algum lugar, se você quiser.
— Lugares são o de menos.
— O problema é pegarmos um resfriado com esse tempo.
— São banais, os resfriados são banais. Vivo resfriado desde que nasci. Ade-mais, essa obsessão das pessoas com a saúde, no fundo, é desimportante.
— O que importa então?
— O seu amor de horas.
Mas depois, quase imediatamente, ele desfazia o impasse, assumindo um tom mais suave:
— Podemos ir aonde você quiser, meu amor.

* * *

Abro e fecho os olhos várias vezes: um incêndio vem e me toma o centro. Abro e fecho os olhos várias vezes: a nuvem me empurra de vez ao negro-branco no interior das chamas. Abro e fecho os olhos: quero ver o rosto dele pelo menos uma vez, verda-deiramente. A última.
No diário de Maurício, antes de virmos morar juntos, ele anotou: Às vezes, pro-curo pelos meus olhos quando eles não estão juntos aos seus. Encontro-os, diversas vezes, boiando naquelas poças de chuva por onde saltaram ontem nossos pés descalços, frágeis patas de gente. Talvez essa rasidade exista para nos conter ou nos distrair, não sei. O que você sabe sobre a rasidade da chuva?
Depois, mais objetivo, desenrolou: Acho que ele me vê, não sinto seus olhos vazios, sinto-os cheios, creio que de mim. Excita-me a ideia de que ele me vê em segredo, por trás desses vidros escuros. Mas logo depois me entristeço: será que ele me vê mesmo por trás dos óculos escuros? Peço-lhe que se case comigo. Serei seu guia. Parece que ele me encara... ou me enquadra? Ouço-o: nunca pensei em me casar. Pois comece a pensar, concluo.
Gostei quando ele leu pra mim. Pedi que repetisse até fixar palavra por palavra. Pra mim, não é difícil memorizar poemas, trechos de livros, letras de música, diálogos inteiros captados por aí. Na verdade, reter frases ou mesmo o ritmo da voz alheia foi uma espécie de dom adquirido durante o longo e doloroso processo de perder a visão. Que mais ele poderá ter escrito? Alguma anotação breve sobre nossas primeiras noites? Sendo romântico e poeta, o que escreveria?
Um poeta, em geral, almeja a autenticidade, ainda que conviva com pessoas cuja percepção da vida é quase nula. Seu desejo é nos pôr uma mordaça, a fim de não espa-lharmos mundo afora a banalidade quase indecente com que usamos as palavras no dia a dia. Não se deixe levar pelo aproximar rasteiro dos poetas: quando se aproximam, é pra ferir nossos sentidos afeitos à superfície. Nada de se pôr a admirar a beleza com que disciplinam tonicidades, ritmos. Você estará condenado a esquisitice da paisagem, como se, de súbito, compreendesse estar fora da linguagem, esvaziado, pois somente eles, os bardos, podem varar a eternidade à cata de palavras, a fim de ordená-las. Não pense essas bobagens: palavras, caçadas ou não, permanecerão sempre além de nossa vontade ou ordem. Não caia na roubada de ver beleza nisto. Fuja da poesia, enquanto é tempo.
Todavia, minhas razões físicas têm um nó com a alma. Por mais que saiba e a-conselhe, não adianta. Tudo que faço é abrir as pernas e recebê-lo por trás. Longe, muito longe de qualquer postura pragmática, racional, pareço voltar ao princípio de toda a concepção. Embaixo do corpo dele, encolhendo ao contato de seus lábios, do suor da minha nuca com o pescoço dele, me vejo tão minúsculo que por uma fração de tempo sou capaz de jurar sentir o peso de Maurício me empurrando de novo ao umbigo do mundo — quente e sem saídas —, então, respiro, livre de todos os vãos.

* * *

Em alguns dias, tenho uma luz cristalina. São dias raros, de difícil retorno. Nos outros: círculos vazios. Às vezes, a gente ainda vai a lugares frios, ele quase sempre canta Please please please let me get what I want — quando não canta, assobia-a. Tão perto que posso brincar de vê-lo: o perfil do rosto pálido, o nariz reto, o queixo compri-do, o olhar azul-confuso. Eu lhe diria, se fosse época, começo de vida, de romance: você se parece com o Morrissey, e sentiria o seu riso descrente.
De vez em quando, uma angústia me atropela: fico horas deitado de bruços no chão, tentando tocar nalgum inseto, uma aranha, uma formiga que me faça acreditar ainda estar vivo. Maurício, nesses momentos, está fora, batalhando a nossa sobrevivên-cia, não pode gritar: ei, Pedro Jaspe, deixe de criancice, levante-se.
Quando podia ver a luz do sol, gostava de passar manhãs inteiras pegando for-migas e depositando nalguma lata de doce — goiabada, marrom-glacê, leite condensa-do. Pensava, banalmente, que os insetos iriam morrer, iriam ficar gordos com tanto doce, então explodiriam diante de mim. Todavia, nenhuma explosão aconteceu. Hoje, que penso diante do sol que não vejo? Adivinho quando Mauricio chega, sinto o correr dos dias sem ter a constatação dos olhos. Perco, além de parte do instinto, o contato natural das coisas dentro dos ciclos. Vegeto, pois não creio na compensação de um sentido pelo outro, quero restar imóvel dentro do ritmo do vazio deste, de agora.
Dores agudas me abatem. Frases tristes fogem pra fora do peito. Amaldiçoo os deuses, eles não existem, mas eu os amaldiçoo. Tento colocá-los em tela, em imagens distorcidas. Depois, pergunto a Maurício o que criei, ele me esclarece:
— Rosto desfocado na parte direita da tela, escurecido por tonalidades de roxo e azul. Embaixo: outro rosto sem visibilidade, meio confuso por trás do cinza.
— E o resultado disso? — questiono.
— Perturbador.
Gosto quando ele fala assim: perturbador. É melhor do que o vago maravilhoso ou o desconfiado gostei que ele pronuncia, por vezes, diante de uma nova tela.
De vez em quando, me equivoco pela casa, achando que ele se esconde nalgum canto, onde pratica coisas ocultas ou talvez sofra uma dor-esconderijo, daquelas dores jamais partilhadas, porque, em geral, tão aguda que quando a entendemos dor o pranto já se faz rio. Na verdade, não me recordo de choros oriundos dele.
— Você já chorou alguma vez em sua vida, Maurício?
Ele me abraça, dá uma de suas gargalhadas:
— De onde você tira tanta pergunta sem sentido, Pedro Jaspe?
Não deve ter chorado nem mesmo quando menino. É uma pessoa estranha, eu sinto. Ando devagar, tentando achá-lo em cantos misteriosos. Quero descobrir coisas sujas nele, desfazer o encanto, me libertar. Erro. Não o acho. Chamo-o. Uma, duas, três vezes seu nome sai de minha garganta.
— O que há? — ele responde depois, como se retornasse de um breve exílio.
— Você se esconde... Deve fazer uma infinidade de coisas ocultas por aí.
— Que papo é esse, cara? Estava colocando o lixo lá fora.
— Ah, a velha desculpa do lixo.
Ele ri uma risada encorpada, que parece tomar conta do mundo.
— Vamos ouvir alguma coisa — proponho. — Já é noite?
— Quase.
Vem um barulho do lado direito, um farfalhar de pano. Possivelmente, uma jane-la foi fechada. Ouvem-se alguns passos, depois tudo cessa.
Em pé, próximo à porta de entrada? Ou abaixado, junto ao amontoado de discos, tentando se decidir por um?
Alguém se movimenta em cima de nosso teto. Um casal de velhos, ele me disse quando alugamos o térreo. Não se preocupe, eles não incomodam ninguém. Deveriam morar embaixo, respondi, seria mais lógico, já que somos jovens, e eles, idosos. Ele respondeu nem pensar, escolheu esta casa justamente pra não ter de ficar preocupado se subo, se desço escadas. Mas, Maurício, estou ficando cego, não aleijado, protestei. Cego e chato, ele frisou, os proprietários estão alugando o térreo, não o primeiro andar. Tem quintal, jardim, podemos pagar, portanto, vamos morar no térreo, pare de complicar as coisas, por favor.
Novo barulho de plástico. É aquele fininho que protege o vinil. Recusamos ade-rir às mídias novas, eu e ele, guardiões de um tempo carcomido, quando comprar um disco era um ritual que se iniciava na busca específica por uma daquelas criaturas re-dondas e frágeis — nossos passaportes mágicos, alguém falou —, continuava no cuida-do em trazê-las pra casa, como quem traz na sacola um segredo, um bebê. Depois, ápice dos ápices, munidos de cigarro e café, sentávamos perto do toca-discos, atentos ao que a criaturinha negra, rodopiante, se dispunha a nos oferecer: uma outra atmosfera? Cidades esmaecidas? Temporalidades redescobertas? A descontinuidade do mar? Casas de in-fância perdida? O cheiro quente de um abraço? O conforto de morar um segundo dentro dos olhos de alguém?
Cheiros de mar, sim. A cada vinil adquirido, tínhamos o mar e tínhamos o porto, estávamos em ambos plasmados.
— Fique ao meu alcance — peço-lhe.
Ele novamente gargalha:
— Que cara exigente...
Me dá café sem açúcar com biscoitos doces de enjoar. Depois, pergunta se quero que ele leia pra mim.
Ver, ver, ver. Enxergar agora o rosto dele. Estaria feliz? Sei que ele suspira bai-xinho. Minha mente projeta uma poça de água escura que, em segundos, fica laranja. E o rosto de Maurício? A poça de água cresce. Dedos meus são caçadores de pele e traços. A finitude está ligada aos charcos, penso, mas deve ser mais um pensamento bobo den-tro da vaguidão.
— Maurício, tá longe do inverno?
— Um pouco... Tá entrando o outono...
No outono, eu pintava mais. Antes, era essa estação que me dava a impressão de eternidade. Depois, perdi as grandes impressões. Quando criança, havia uma ideia ro-mântica sobre a cegueira: achava que não se distinguiam pessoas, bichos, coisas, mas somente a gradação das cores, de acordo com a etapa do dia. A manhã seria branca, amarela e laranja; a tarde azul, verde, lilás; a noite, vermelha, negra, cintilante.
Tento guardar determinadas imagens no cérebro, com medo de que com o desa-parecimento delas também minha vida vá-se embora. Quando ando pela casa sem o bra-ço de Maurício, tateio paredes, objetos. Vou adivinhando suas formas, as finalidades, se possível, as cores. Quando minha mente me engana, me irrito, quebro coisas, me atiro em qualquer direção, mas raramente caio. Maurício chega e me ampara, pedindo calma. Isto não é engraçado, é, antes, idiota: ele me ampara quando quero me despedaçar, ir de corpo inteiro ao chão.
Deixo de pintar, retorno. A lembrança do que fui um dia — pintor de galeria, da Escola de Belas-Artes — com o tempo vai se tornando esmaecida, como se houvesse decorrido séculos. Choco-me com a minha estranha natureza: cadê o teu passado? En-goliste-o? Devolva-me. Repito, como se eu fosse um outro a ressurgir: devolva meu passado, devolva o meu passado, já! Trata-se de conseguir o processo lento de retorno aos motivos capazes de nos fazer acordar a cada manhã, sobreviver a cada inverno. A-lém de Maurício, o que mais tenho em mãos? Antes de Maurício, o que me segurava deste lado da vida? Obceco-me aí: nos invernos, fenômeno que nesta cidade se resume a dias pesados, de chuva ou de continuidades nubladas.
Ao trazer de volta os invernos, tenho a sensação boa de que no ritmo inegociável dele vou compreender o mistério da vida. Qual! Não compreendo coisa alguma, apenas volto a sentir dentro da atmosfera antiga o desejo de transpor o inverno e suas cores à tela, o que sempre acabo por não fazer.
O que é o ontem senão imagens? Do ontem não vivi nem carrego nada, a não ser traço ou cor. Admiro o rastejar absoluto de todas as coisas e seres durante o fim do ou-tono. Quando trabalhava, me lembro que fingia enfermidades assombrosas, os colegas diziam como forma de consolo: é a mudança de tempo, todo mundo está gripado.
Concluo que Maurício compreende aquilo que não se desgasta dentro de mim. Me entrego então a ele, farto das sensações agudas do invisível, louco pra ignorar o que não for sua boca dormente, suas preferências, seu sexo.

* * *

Durante anos, custei a evitar os charcos aglomerados no meu caminho. Caía e me sujava de lama; Maurício, por vezes, me levantava, rindo.
Ele leu pra mim num dia de chuva: Tudo que sei de motivo, de significação, é encará-lo, é ter perto, muito perto, sua face lívida. Ele pintou meu rosto na parede junto aos rostos de outros homens que lhe pertenceram. Talvez por isso me sinto mais sen-timental nesta manhã. Ele levou meses pra concluir a pintura do meu rosto. Desenha melhor coxas e bundas masculinas do que expressões. Antes de sair, organizo as coisas a fim de deixá-las ao seu alcance: comida, bebida, café fresco, fósforos, cigarros, guardanapo, o material de pintura, os discos preferidos, e uma camisa extra, caso o tempo esfrie. Ando infeliz nas ruas. Por vezes, me sinto melhor quando passo pela praça onde o vi a primeira vez, depois do canteiro das azaleias, de óculos escuros, apertando a bengala entre as mãos. Ontem, levei uma queda. Fiquei todo encharcado. Lembrei dele, constantemente a tropeçar em poças de chuva. Preciso sempre alertá-lo: cuidado, há um charco à sua direita. As poças fazem festas com os minguados raios de sol. Muitas vezes, saem quadros bonitos desses reflexos: fragmentos de brilho intenso, partes de corpos de pessoas, de automóveis velozes, de nuvens se movendo ou estancadas.
Às vezes, me desanimo. Pouquíssima gente compra quadros em Maceió. Porém, forço minha paciência a ser sóbria: só me permito voltar pra casa quando a noite cai.
Um cara disse anteontem: não era você quem vendia poemas nas praças? Res-pondi: agora vendo quadros de Pedro Jaspe, um grande artista, quer ver? Ele rebateu: nunca ouvi falar desse Pedro Jaspe, de onde é? Expliquei-lhe: tratava-se de um triste equívoco não conhecer o Pedro, era um grande talento, talvez o melhor de sua geração. Inclusive, acrescentei, ele é cego. Cego?, o cara pareceu não entender, um pintor cego, como assim? Mostrei-lhe as telas. Não foi preciso mais nada, o cara escolheu duas, balançava a cabeça, mudo, preenchia os cheques. Cada tela significa dois, três meses de feira e contas pagas.
Os óculos negros dele é meu porto. Quero chegar em casa e encontrá-lo alegre, pintando. Isso me anima a sair atrás de compradores pros seus quadros. Os meus poe-mas dão apenas pro ônibus.
Parou de ler, ficou quieto. Me olhando, talvez.
Eu disse:
— Leia mais. Você escreve tão bem.
E ele:
Não sobrevivo tateando, não posso, portanto, ser nenhum animal além de ho-mem. Achei, quando menino, que podia ser peixe.
— Isso é bacana — falei. — Também queria ser peixe quando criança. Na ver-dade, queria ser um tubarão pra surpreender aqueles que se descuidassem mar adentro. Um tubarão pra atacar pessoas felizes, ricas, sobretudo, de férias, que não soubessem dos limites entre praia e mar. Pescadores não, pescadores seriam poupados.
Ele não pareceu aprovar meus sonhos infantis:
— Qual é o sentido disso? — perguntou, ríspido.
— De quê?
— Atacar turistas? Matar pessoas felizes? O que há?
— Não há nada, era meu desejo quando criança.
— Parece coisa de ressentido: morte às elites que vêm desfrutar nossas praias, nosso verde, nosso sol. Só falta dizer que deseja ver as massas descerem o morro, invadir os shopping centers e condomínios de luxo.
— Jamais diria uma bobagem dessas, Maurício.
— Não? Cai como luva na retórica dos esquerdistas fracassados.
— Mas que retórica? Que esquerda? Eu sou apolítico.
— Apolítico? Até parece! Apolítico is my ass.
Achei graça, ele raramente falava coisas vulgares assim.
— Your ass? Interessante...
— Além do mais, não existem tubarões em Alagoas — ele finalizou.
— Eu bem sei.
* * *


Por vezes, há um tempo de fazer coisas bestas. Sair só, por exemplo. Depois do almoço, quando ele está dormindo, gosto de escapar. Em verdade, nunca sei se ele real-mente dorme. Não sou silencioso. Faço uma infinidade de barulhos quando ando, por isso, não posso ter certeza de que ele não perceba. Ainda assim, saio sem lhe comunicar. Sem bengala, sem celular, apenas de óculos escuros. Abro uma porta, mais outra, vou passando. Muitas vezes, nada acontece. Volto pra casa, Maurício finge não saber que saí ou então me pergunta, ironicamente, quais as novidades. Outras vezes, me dou mal, esqueço os sinais que facilitariam o retorno, me perco. Peço ajuda a desconhecidos, ligo pra ele de algum orelhão. Basta tocar o sinal de ligação a cobrar, ele atende de pronto:
— Onde você está, meu amor?
Como retornar. Como se acostumar. Como se virar. Como não precisar. Como se lembrar. Agora, por exemplo. Caí num lugar abafado. Cheiro de mofo, de bebida, de cigarro, de alfazema, amalgamados, entrando direto nas narinas, fazendo o estômago revirar. Acabo de penetrar onde não há janelas, concluo. Barulho infernal de vozes, co-pos, músicas. Deve ser um prédio vizinho, creio. Procuro identificar a banda, mas meu estômago se manifesta difícil, impede o cérebro de ter outras funções além de enjoar.
Falo por cima das vozes, do tintilar de copos, do som. Sei que entrei num terreno alheio, mas por que não me obstruíram a passagem?
— Estou perdido — grito.
Ninguém responde.
— Estava tentando sair um pouco, andar nas ruas...
— Aqui não é a rua — alguém diz.
Voz irônica, feminina, parece estar longe e, ao mesmo tempo, perto de mim. Gargalhadas, ecos de frases estúpidas: Sua mãe é quem devia... Ele é vizinho de Martim. Não gostei desse filme não... Me dê mais gelo... A porra desta porta não fecha direito...
Tento me orientar pela direção donde vim, estendo a mão em busca de uma porta ou parede, mas toco numa carne suada, talvez um braço ou um pescoço. Será possível?
— Esse cara é idiota? — alguém se chateia com meu toque.
— Com quem ele veio?
Começo a ficar surdo com o barulho, a sequência de frases escapando. Grito:
— Onde é a saída?
Nada. Os barulhos tornam-se ainda mais intensos.
— Por favor, é que sou cego, estou perdido.
— Cego? — alguém diz num tom engraçado.
— Quem abriu a porta pra ele? — pergunta outra voz, desconfiada.
— O que foi que ele disse? — fala outra, distraída.
— Disse que é cego.
— Esse homem bonito é cego? — duvida alguém.
— Como é que ele entrou aqui?
Bárbaro! Uma voz feminina disse que sou bonito. Não me lembro sequer se pen-teei os cabelos, mas isso é bom.
Alguém se aproxima, voz grave, quer saber:
— Ei, cidadão, se você é cego, cadê seu guia?
— Não tenho guias — respondo.
A voz grave me toma pelo braço, ainda a questionar:
— Nem um cachorro, uma bengala, um garoto de rua?
— Não.
— Um celular com GPS?
Minha vez de rir:
— GPS seria interessante.
A voz grave não parece acreditar:
— Como consegue viver sozinho assim, meu caro?
— Mas não vivo sozinho — esclareço. — Tenho um namorado. Só que ele está dormindo. E eu fugi.
A voz dá gargalhadas:
— Ainda por cima é viado?!
Também acho graça:
— Nem sempre por cima — garanto.
A voz aprova minha resposta, parece se divertir muito:
— Cego, viado e passivo. Você gosta de complicações, hein?
— Você acha?
— Sem dúvidas. Mas, venha, venha, a saída é ali. Quer que te leve pra casa?
— Moro em Jacarecica.
— Mas estamos em Jacarecica, cidadão. Qual é a sua rua?
Outra voz nos corta, enfadada:
— Esse babaca mora no final da rua, no andar térreo daquela casa azul e branca, está vendo? Basta atravessar a pista e deixá-lo do outro lado, ele deve saber chegar lá.
— Ah!, você o conhece?
— Mais ou menos, é o namoradinho daquele poeta, vizinho de Martim.
— Ok, eu o levarei.
Ainda divertindo-se com as gradações, meu novo guia voltou a comentar:
— Cego, viado, passivo, namoradinho de um poeta. O negócio está ficando cada vez melhor.
Começo a achar o cara interessante, vulnerável que sou a esse tipo de humor.
— E devemos acrescentar que ele se parece com o Morrissey — digo.
— O seu namorado?
— Exato.
— Podre de chique, hein?!
— Quem, eu?
A mão apertou mais meu ombro:
— Sim, você. Namorar alguém parecido com o Hombre!
— Ora, muitas vezes conhecemos pessoas que nem sabem quem ele é!
— Sério?
— Tô te falando...
— Quem são essas múmias?
A voz parecia não apenas surpresa, mas incrédula.
— Ah, tantas, tantas pessoas. Por vezes mencionamos seu nome e parece que to-dos o ignoram. Ou então perguntam se me refiro a Jim Morrison, do The Doors.
— Bando de medíocres, não?
— Com certeza.
Alívio. O cheiro da rua dispensa apresentações. De novo, o cuidado indispensá-vel com os passos, um a um. O sujeito ao meu lado diz seu nome, Joaquim, José, um nome assim, tão comum quanto o meu. Quando chegamos, pergunta se é preciso des-crever a casa ou basta dizer o número. Respondo que basta o número. Cinquenta e oito, ele diz. Está correto, confirmo, moro aqui. Não é cego de nascença, então?, ele quer saber.
— Não, fui ficando ao poucos. Uma doença degenerativa.
— Ah!
Ele aperta minha mão, diz pra eu aparecer qualquer hora dessas. De onde estamos pra casa da amiga onde ele está hospedado são duas quadras apenas. Eu acertaria? Digo sim, claro, é facílimo andar duas quadras. Ele diz que ficará na cidade até o fim do mês, é do interior, mas vem sempre passar férias, pegar uma praia, apreciaria muito conversar comigo, tomarmos uma cerveja. Eu, por acaso, bebia?
— Muito — digo.
Aquilo estava pra lá de divertido. O cara deveria estar me cantando desde o iní-cio, mas só então dei por mim.
Resolvo exagerar:
— Às vezes, passo dias inteiros bebendo. Como um tubarão no limite entre mar e praia, à espreita de turistas distraídos.
Ele dá gargalhadas, achava boa aquela do tubarão. Apertamos as mãos novamen-te. Ele comenta ser uma pena ter alguém da janela me fiscalizando, ri de novo, se des-pede.
Bárbaro! As pessoas são tão engraçadas, me dão arrepios.
Não entro em casa. Dou um tempo até que o sujeito tenha ido embora. Cidadão, ele me chamou de cidadão. Estaria nalgum canto a observar? Ou voltara pra sua festa? Comentou haver alguém na janela da minha casa, me fiscalizando. Imagine, que delírio! Maurício com certeza ainda está dormindo.
Quero novamente sair sem rumo. Manter o leme firme, não perder o domínio nem cair naquele desejo absurdo de voltar pro quarto, nele permanecer dias seguidos sem sequer me mover.
Carros. Apitos. Vozes masculinas. Estou numa pista ou próximo dela. Será a avenida principal? Se sim, existia uma praça, nesse sentido, em linha reta, darei nela com certeza... Estou indo em linha reta, certo? Se ainda existir a praça, é lógico. As coisas mudam, é verdade, não estou com medo de nada, não me empurrem, não me apavorem. Inferno.
Você é um homem ou um saco de amendoins?
Um saco de amendoins, com certeza. Torrado. Sem pele.
Foi num dia comum assim que me aproximei de Maurício, estava saindo do con-sultório médico, parei na praça pra descansar. É bom sentar nas praças, ouvir as pessoas reclamarem da vida, dos ônibus, do governo, de Deus, ouvindo a música, geralmente ou ruim ou melosa demais, músicas insossas que predominam nos radinhos dos vendedores ambulantes. Era, se não me engano, essa praça pra onde vou agora, ou não, seria aquela outra, atrás do Fórum, onde havia hibiscos brancos num passado tão passado que pode até ser delírio, invencionice minha?
Antes de qualquer coisa ou lugar, existem os charcos. Há o cheiro de substância acumulada, o nojo de ser pego por ela. Há a chuva começando, fininha, quase uma não-chuva, nos enganando, siga, vamos, dá tempo, pode prosseguir, depois, engrossando, sorrateira, de braço dado com o vento, qualquer coisa, plaft!, os dois te levam ao chão.
Uma mão firme cercando a minha, oferecendo ajuda.
Sei que é Maurício por causa da pele. Não que eu saiba explicar exatamente qual elemento que, presente na pele dele, me faz reconhecê-lo de imediato. Isso, realmente, não sei. Quem sabe a mistura deles? O cheiro, a temperatura, a quase ausência de pelos?
Me levanto, ajudado por sua mão. Um resto de lama fica grudado à minha roupa, sinto seu contato úmido no corpo, bato com as mãos tentando tirá-lo de mim.
Ando com o braço sobre os ombros dele. Não arrisco perguntar: é você mesmo, meu amor? Não posso ceder à tentação de quebrar o encanto, feito Orpheu de costas pra Eurídice, a vontade de ver sepultando a de ter. Engulo o silêncio, tudo me parece preci-so, lógico, por isso, ando, tentando limpar a lama da roupa.
Mas, então, ele resmunga pra eu parar de bater nas calças, estava suja, sim, diz entredentes, já era, só água corrente e sabão poderiam limpá-la. Depois, reclama que está de saco cheio, me seguiu, não sabe o que tenho, aonde eu queria ir, quem pretendia encontrar. Estaria de caso com aquele sujeito narigudo?
— Não faltava mais nada! — ele resmunga, impaciente.
Pergunto qual sujeito narigudo. Maurício se chateia mais, repete várias vezes, separando as sílabas, provavelmente me encarando: você me chateia, muito, em excesso. Desse jeito, ele confessa, não pode ser.
Passamos algum tempo nisso, ele respirando como quem corre uma maratona, eu temendo uma explosão.
Explico ter entrando por engano numa casa onde havia uma festa. Um sujeito me achou engraçado, se ofereceu pra me trazer de volta. Não sabia se ele era narigudo, peço desculpas, pois.
Ele ri, de repente. Alto. Jesus Cristo, exclama, como eu poderia ter aquele dom de falar as coisas mais estapafúrdias do mundo?
Desentendo:
— Mas o que foi que eu disse, Maurício?
— Ora, você me pediu desculpas pelo cara ser narigudo!
— Pois se você parece se incomodar tanto com isso.
Não, ele diz. Não, meu amor, você não tem juízo nenhum, eu desisto. Me abraça forte. Resolve também pedir desculpas por ter ficado impaciente comigo. Aceito-as de bom grado. Mais tarde, no banho, provavelmente ele cantará Please please please, let me get what I want. Haverá toques, massagens, esfregões. Haverá toalha macia, café, biscoitos, gozos, revelações. Por tudo isso, dá gosto esperar. Por enquanto, a chuva nos atrapalha, porque é necessário ser ágil o suficiente, saltar poça por poça, e eu dependo do aviso dele: cuidado, tem um charco à sua esquerda.
Ali, no entanto, a um palmo: a felicidade pedra minúscula, a felicidade que não se conta, atrás da porta, à espreita. É fraca, mas eu a tenho, formando véus e divisões. Chamo-a: a última das réstias. Desde o princípio das trevas, esperei-a como se fosse a clareza definitiva, a única possibilidade de me movimentar fora do escuro, e, assim, também absorver o movimento de fora. De Maurício, dos outros seres, dos dias, da at-mosfera. Mas, principalmente, confesso: os movimentos dele, de Maurício, o resto, é preciso que se diga, o resto, realmente, desimporta.
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*Este conto faz parte do livro Chuva secreta, no prelo.

Em Não se vai sozinho ao paraíso, primeiro romance que integra a trilogia místico-erótica de Állex Leilla — cujo centro são as micro-...