sábado, agosto 28, 2010


Uma das decepções mais cretinas da vida é, sem dúvidas, a decepção de esperar durante uma semana, até mais, por um livro, recebê-lo das mãos do carteiro como quem recebe um bebê de poucos dias, ser tragado por toda aquela atmosfera grave, quase diáfana, que é ter em mãos um novo livro, e, quando chegada a hora de adentrar nesse universo novo, descobrimos que o livro é fraco, nada tem a nos dizer. Nos decepcionarmos com um livro é muito, muito chato. Ratos de sebos reais há anos, depois da Internet, viramos ratos de sebos virtuais também, e hoje o paraíso ou ponto de encontro sagrado dos ratos de sebo é, sem dúvidas, a Estante Virtual. Falamos aqui tão somente de leitores, pessoas que compram livros para ler, não queremos saber de colecionadores, tampouco de exibicionistas, mas, repetimos, leitores, essa corja que adora sofrer. Pois é! Por sermos leitores, nada mais que leitores, descobrimos que podemos comprar no mesmo lugar tanto livros maravilhosos quanto funcionais, podemos reaver livros esquecidos nas ratoeiras da memória, economizar na compra de livros que, mesmo com o frete, não raramente saem mais baratos do que nas livrarias, além de chegarem novinhos em folha na porta de nossa casa... Mas nem essa facilidade supera a cara de fuinha retorcida pro lado que é como ficamos quando lemos uma, duas, dez, cinquenta, cem, todas as páginas daquele livro tão esperado e, finalmente, quase sem querer, reconhecemos, sozinhos, dentro da concha da noite, inseridos no silêncio da rua, por companhia apenas os raios da luminária vermelha, reconhemos, miséria de vida!, que o maldito livro não valia um único centavo, tamanha é sua fraqueza em ser tão somente um livro ruim, um livro que jamais deveríamos ter pedido, comprado. Passamos a pensar, inconformados, talvez se não fosse tão virtual o paraíso, se tivéssemos tido a chance de folhear suas páginas, ler um trecho aqui, outro ali, perscrutar sua linguagem, talvez, quem sabe?, perceberíamos a esparrela antes de cair, inocentes, nela. Esse talvez se é um alento, uma espécie de consolo na madrugada em que se descobre o engano. Mas, agora, de dia, olhando de novo o livro abominavelmente inútil em nossa estante, nos perguntamos, será?

quarta-feira, agosto 25, 2010


Mas lutamos, lutamos todos os dias quando abrimos as janelas pela manhã e cerramos as cortinas imediatamente após às 17:30, só pra não ver o rápido acender de luzes deste bairro, desta rua. Se esta rua, se esta rua fosse minha, eu mandava, eu mandava ladrilhar, com pedrinhas com pedrinhas de brilhantes, para o meu, para o meu amor passar. Lutamos o tempo que nos vem e muito nos cabe ou sobra ou falta, lutamos o mais que podemos, perdendo fios de cabelo, cortando unhas, suando, a cada dia, a cada minuto. Não queremos ser reles, não queremos ser banais. É um esforço indecente, sabemos. Mas não choramos nem nos descabelamos. Nosso segredo, foi Macalé quem disse, é que somos rapazes esforçados... Entretanto, a qualquer momento, podemos morrer exatamente assim: na passagem de um gesto a outro. De graça, sem razão. Sabemos, desconfiamos o quanto se pode reter a vida, estreita, estranha, dentro de nós. Reparamos: as árvores já não estão tão secas, o tempo já não esfria tanto quanto ontem. É dos dias banais que extraímos singela significação. Passamos um tempo branco de fala ruim, de gestos vagos. O pior de tudo é quando tentamos explicar as coisas a miúdo, sem ter palavras belas, sem motivações. Olha, hoje é um dia como outro, somos gente, estamos aqui. Poderíamos apenas nos calar, é claro. Mas não, não queremos.

domingo, agosto 22, 2010


A velhice, dizem, assim como o amor que amadureceu, perdeu o frio na barriga e a tensão da incompletude, nos leva a uma espécie de resignação que pra alguns é paz, pra outros é decrepitude. Todavia, envelhecer continua sendo um processo complexo, que ultrapassa a questão da idade e pode ser reiventado pelos próprios atores que o protagonizam. No melhor filme dessa estação, "Hanami - cerejeiras em flor", a decrepitude está nos mais jovens, filhos do casal de idosos Trudi e Rudi. Enquanto seus pais conseguem, cada um a seu tempo, se reencantarem com a vida e consigo mesmos, seus filhos são representados como frios, distantes, sem tempo, impacientes, cruéis, mortalmente chatos. Esse rencantar com o mundo, com o outro, com as miudezas da vida, está nos mais velhos, especificamente no casal protagonista, e constitui a beleza do filme. O ponto de partida da história está na notícia que Trudi recebe: o marido, Rudi, tem poucos dias de vida, talvez mais alguns meses, dizem os médicos, que aproveitam para lhe aconselhar a viajar com o marido, quem sabe realizar uma aventura, um sonho. A voz de Trudi, em off, nos comunica, no entanto, o impasse: o marido detesta aventuras, detesta novidades, é daqueles seres que preferem a rotina, os velhos hábitos, o conhecido. Quem realmente gosta de aventuras, deseja ir ao Japão, é ela; ela que está saudável, ela que se coloca como mediadora entre o marido e o mundo, ela que cultiva o gosto pela arte, pelo drama. Dentro desse pequeno impasse, contornado pelo amor que nutrem um pelo outro, o filme se desenvolve. Cheio de sutilezas, rico de pequenas simbologias, lento, por vezes cruel, por vezes sublime, o filme vai construindo as relações entre homem-mulher, pais-filhos, irmãos-irmãs, nora-sogros, Ocidente-Oriente. Ótimo filme. Veja você também.

Ficha Técnica:
Título Original: Kirschbluten - Hanami.
Origem: Alemanha / França, 2008.
Direção: Doris Dorrie.
Roteiro: Doris Dorrie.
Produção: Harald Kugler e Molly Von Furstenberg.
Fotografia: Hanno Lentz.
Edição: Frank C. Muller e Inez Regnier.
Música: Claus Bantzer.

sábado, agosto 21, 2010


[...] Não lhe digo nada. Não atendo sua ligação. O zumbido se junta a milhares de chamados perdidos na capital. A essa hora, tão cedo, ela pensa: ele deve ter saído com alguém. Depois, me lê em silêncio. Ouve alguma música que eu lhe mandei. Ela está no tapete da sala, deitada. Eu, na escuridão, sem nuvens, sem estrelas, só imensidade de luzes e mormaço, vejo-a.
Penso em salvá-la de alguma forma, indo a seu encontro. A solidão dela é um círculo de fogo, mesmo que eu queira, jamais conseguirei ultrapassá-lo. Sinto apenas. As ardências. Ela diz que dói. Ela costuma dizer, às vezes, sozinha, pra casa, pro bairro velho onde mora, pro mar, pra ninguém, que dói. E nesse instante ela nem sequer chora.
Dói.
Pesado. Mais pesado que essa maldita história que nos consome. Dói, ela diz. Sozinha. Sem lágrimas, sem mão comprimindo o peito.
Todavia, não, não acabará assim. É a minha vez de buscá-la pelo telefone, ligar feito um louco pra sua casa, pro celular, mesmo sabendo que ela desligou o telefone logo que me chamou e eu não atendi. Talvez até tenha saído.Talvez procure velhos amantes que a tratem melhor do que eu. Vai a lugar nenhum. Dirigindo em alta velocidade pelos bairros da velha cidade, pra lugar nenhum ela vai, penso, vendo a linha sem fim de seu para-brisa avançando por Ondina, Rio Vermelho, Amaralina, Pituba, Costa Azul, Boca do Rio... Oh, não. Pare um instante e atenda, por favor... Ouvindo Bob Dylan? Stones? Morrissey? Pelo Corsário, Jaguaribe, Patamares, Piatã... saindo fora do alcance dos meus olhos.
Dias vão passar, eu sei. Vou dormir um pouco e voltar a pôr minha cabeça pra funcionar.
Meu coração às vezes é mais triste que o dela. Quando ela chega bem pertinho de mim e dá de ser mulher até não poder mais, me encarando, passeando com a mão no meu peito, encostando a testa no meu peito, de leve, como se me espreitasse através da camisa. Sinceramente: não sei nem o que pensar. De repente, ela diz: por que o tempo esfriou assim? Eu não trouxe nenhuma roupa de frio... E eu, que deveria abraçá-la forte, dizer que tenho dezenas de camisas, casacos de frio no guarda-roupa, que ela pode pegar o que quiser, que no meio do ano é assim mesmo, de repente chove, de repente esfria, eu, em verdade, nada falo, nada sei. Apenas fico. Dentro do calafrio que é vê-la tão mulher, aninhada no meu peito, como só elas, as mulheres, conseguem ficar: mudas, congeladas, grudadas, como se fossem um apêndice. Mas não, sei, sabemos, que não são.

segunda-feira, agosto 16, 2010

Editora Casarão do Verbo


Quem for à Bienal de São Paulo, não deixe de conferir o stand da Editora Casarão do Verbo, de Rosel Soares. Trata-se de uma pequena-grande editora baiana que aposta no bom gosto e na qualidade de suas publicações. Em outubro, a editora Casarão do Verbo lançará meu romance Primavera nos ossos, que ganhou o Edital Petrobras para Criação Literária. Dentre os livros já lançados pela Casarão, destaco a antologia Travessias Singulares, contos que versam sobre a relação entre pais e filhos, entre os autores estão Miguel Sanches Neto, Nelson de Oliveira, Silviano Santiago, Hélio Pólvora, Carlos Heitor Cony, e meu amado João Filho. É uma bela antologia.

domingo, agosto 15, 2010


Se você soubesse o tanto de reajustes entre o acordar e o prosseguir... ah, se soubesse! O dia é vazio, as possibilidades minúsculas, mas se vai tentando, há tanto, vai-se tentando transformá-las em gigantes. Voltar ao luxo de estar no centro de si mesmo, não à deriva. Baixa temperatura. Suor saindo fácil sob a pressão do algodão molhado. Pensar na morte não ajuda, na vida muito menos. Vai ficando tarde por dentro. A escuridão faz traça, qualquer pensamento é inutilidade correndo nos fios dos postes. Ou no ralo da pia. Ou no barulhinho das plantas. Beber demais ora ajuda, ora não. Mas há um costume estranho, pegou-se por aí: encher lenços de éter e aspirar até à exaustão. Outro: pingar mercúrio num pedaço de espelho. Fragmentos de prata com escarlate. Ignorar as dores alheias que por ventura empestam o ar do mundo. Que mundo?
Em alguns momentos, você sabe, podemos ser tocados pela sombra das árvores. Resto de felicidade mofada que por acaso o peito escondeu. Fumar sempre duas marcas de cigarro alternadas. Sentir-se severamente frágil, uma saudade absurda, invariavelmente do que não existiu.
Força antiga no varal. A boca retorcida pinga água com sabão. Querer estar perto dele. Já. Pra ninar o silêncio das noites e dos dias claros, de chumbo ou de sol. Chamaremos em pensamento. Põe tua mão aqui no meu colo, meu amor. Lá do outro lado do mundo, se você soubesse o tanto de reajuste... ah, se soubesse.

sexta-feira, agosto 13, 2010



—Você sabia que Hemingway era gay, porém, não dava o cu porque tinha hemorroidas?
— Cada maluquice que você me inventa!
— É sério. Eu soube disso num congresso aí.
— Mentira sua.
— É verdade, eu juro... Ouvi numa palestra, na USP.
— Não sabe nem mentir! Uma hora é um congresso, depois uma palestra na USP. O que você foi fazer na USP?
— Eu viajo muito, meu caro...
— Sei, e nessas viagens vai à USP descobrir que Hemingway é viado e tinha hemorroidas?
— E daí? Não sei por que você está rindo desse jeito. Não tem nada de mais. Pode-se descobrir qualquer coisa em qualquer lugar, é um sinal dos novos tempos. A USP é um centro de pesquisa, ora! Podemos descobrir mil coisas lá.
— Inventa outra.
— Criatura! É verdade. Hemingway era viado.
— Não, não era.
— Estou lhe dizendo, ele era enrustido, os professores disseram.
— Pois estavam mentindo.
— Mas eram professores universitários, mestres, doutores...
— Mentirosos, que nem você.
— Eu nunca minto... Que injustiça.
— Afinal, quando você vai parar de falar bobagens e me dizer por que me chamou aqui?

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— Detesto homens que choram, a menos que sejam como Bebeto, aquele gatinho.
— ...
— Você se lembra do Bebeto, que jogava no Vasco da Gama? Era um gatinho... A beleza é o segredo de tudo, já diria André Gide. Eiiiiiiiiiiii, você está me beliscando?
— Primeiro, Gide nunca disse isso. Pare de inventar citações chulas e dizer que pessoas famosas são autoras delas. Você não me engana. Segundo, pro seu governo, o rapaz jogava no Flamengo...
— Quem? O Bebeto?
— Foi artilheiro do Flamengo...
— Não, senhor. Bebeto? Ele era vascaíno doente!
— O cara jogava no Flamengo...
— Você é maluco, logo se vê que os homossexuais não entendem coisa alguma de futebol... Bem, deixe eu te explicar, não é minha função no mundo, mas o que podemos fazer senão ajudar ao próximo? Tome nota: o Bebeto, aquele gatinho, jogava no Vasco do Rio. Entendeu? E de lá foi pro exterior.
— No Vasco do Rio? Eu ouvi direito?
— Por que o riso?
— Tststststststststs... Como se houvesse outro Vasco...
— Há outro Vasco, sim, em Sergipe.
— Ora, ora, uma mulher entendendo de futebol.
— Mas tá na moda as mulheres entenderem de futebol... Tem até comentarista mulher numa TV a cabo aí...
— Pois sinto te informar que você como integrante da moda feminina é um fracasso, minha cara, porque o Bebeto saiu do Vitória direto pro Flamengo.
— Mas que obsessão com este maldito Flamengo!
— Pois se é verdade... Ele nem precisou se acostumar ao novo uniforme, já que o Flamengo e o Vitória são praticamente a mesma camisa... Hehehehe.
— Vitória, você disse?
— Sim... O maior time baiano.
— Não conheço nenhum time chamado Vitória. É estranho porque conheço todos os times baianos. Daqui de Salvador? Você tem certeza?
— O último campeão baiano. Meteu 3 no seu Bahiazinho, só pra clarear sua memória...
— Realmente, nunca ouvi falar... Me desculpe...
— Deixe de ser cínica.
— Mas se não sei do que você está falando, meu Jesus... Aliás, o problema dos gays é este: trazem informações e referências que ninguém conhece, somente eles, é um gueto fechadíssimo, cheio de códigos estranhos: fulana é uma deusa, não sei quem é maravilhosa, Quatro casamentos e um funeral é imperdível, mas Filadélfia é postiço, não serve... Imagina... E aquela baboseira de chamar as pessoas de ótimas? A ótima fulana, a ótima sicrana... Coisa mais imbecil... Jamais sabemos direito do que estão falando... Um time da Bahia chamado Vitória? Não conheço, nunca ouvi falar... Conheço o Baêeea, o Galícia, o Fluminense de Feira.
- Chega, não dá pra falar contigo.
- Comigo? Ora, o que foi que eu fiz? Sou uma pobre mulher solitária que lava calcinhas, na pia do banheiro, de madrugada.
- Isso é Bruna Lombardi?
- Exato. Filmes Proibidos. Você se lembra?
- Como não?!

Em Não se vai sozinho ao paraíso, primeiro romance que integra a trilogia místico-erótica de Állex Leilla — cujo centro são as micro-...