domingo, dezembro 19, 2010

LEILLA, Állex. Primavera nos ossos. São Paulo: Casarão do Verbo, 2010. 278p.

Trecho do romance:

Entre o bambuzal, a luz fraca das 4h:30, 4h:40, quase 5h:00 da manhã. Enquanto o sol se desloca invadindo a cidade, a sombra do rosto dela vai de poste em poste. Passando, repassando, qual janela de carro, capturando, refletindo-se nos pedaços da paisagem. O rosto dela. O contorno oval, exalando cheiro de gente machucada. O centro vago, escondido atrás dos cabelos. Podemos dizer sem erro que é de vento e areia o meio da cara dela. Mas não, diremos melhor: na verdade, o vento, a areia, o rosto e os cabelos pouco importam, a verdade é que ela emerge do inferno, a verdade é que ela retorna à vida. Embaçada. Descongelada. Sozinha. Assim:
Levanta-se. Confere a roupa um tanto rasgada, suja de sangue. Ajeita-a. Passa as mãos sobre o tecido tentando limpá-lo. Em vão. Conforme Dante, no inferno faz frio de travar os ossos. Movimentos pelo avesso. Anda devagar como se ainda carregasse por dentro o torpor do susto levado horas atrás, ao se certificar que se tratava, de fato, de um ataque.
Beira de morte, amputação.
A pancada.
A bordoada.
Basta trazer à tona uma faísca do vivido que, feito relâmpago, no automático, a lembrança da agressão vem viva: uma serpente à espreita, um dragão preparando a cusparada de fogo.
Sacode a cabeça, evitando que a faísca pegue fogo, atraindo-a novamente pro olho do incêndio. Concentra-se nisto: despistar o registro da agressão na memória, carvão em brasa lhe trazendo tontura, imprecisão. Despistar e cuidar de outra realidade que lhe crava a carne desde que abriu os olhos: a dor. Mais forte que a lembrança do ataque sofrido, o que lhe perfura a carne é a dor de alicate puxando os dentes. A dor de água escaldando pés, mãos, pescoço, sexo, seios. Principalmente ali, nos bicos dos seios mordidos. E as marcas de roxo pisado, ela murmura, apalpando-se, sairão algum dia?

* * *

Fácil é pensar em falar com ele. Não como quem retorna de uma rápida perda de consciência e, confusa, põe-se a dialogar com o que não existe. Não isso de borboleta errante procurando pouso em flores baldias. Que isso, apesar de bonito, é torto e não ameniza dor nenhuma.
Nada de inventar fugas, reticências ou abstrações. Se pudesse estar olhos nos olhos com ele, comentar qualquer bobagem — não da dor, da dor agora não —, cercar-se de coisas leves, comentários sobre a primavera, sobre café expresso com creme, sobre a temperatura certa do vinho tinto, sobre fumar ou não fumar cigarros mentolados, sobre as condições do tempo em Salvador. Algo meio folha de amendoeira ao vento: leve em suas reentrâncias avermelhadas, inútil em sua função original. Que amigos, amigos verdadeiros, ela leu em algum lugar e ainda se lembra, precisam apenas de proximidade, não de conteúdo ou confissões. Precisam é estalar a língua no ar, chegarem a um palmo do coração do outro, mas não adentrarem, permanecerem do lado de fora, feito guardiões que contam histórias pra enganar o amanhecer.
Uma conversa apoio para o corpo, uma conversa pilastra, coluna grega pra escorar a dor. Escore esta hemorragia, querido. Faça em segredo uma simpatia pro corpo se endireitar de novo, pra dor ficar comportadinha. Não tão aguda. Boazinha na vitrine, como dizia Baudelaire, redizia Ana C., rediremos agora, por que não?, boazinha e anestesiada, por favor.
É preciso um passo, depois outro. Dentro do inferno, sobra monóxido de carbono. De dentro do inferno, deve se sair de fininho, mas com precisão.
Novamente, o renascer. Cante uma canção antiga: te furamos com espinho, você era rosa e não sangrou; te furamos com agulha, teu corpo era novelo e se bifurcou; te furamos com a mão de Deus, você era deusa e graciosamente desviou.
Tão simples pedir ajuda a ele.
Tão impossível obter.
Um demônio toca piano.
Ou seria clarineta?
Um demônio dança longe.
Ou seria dentro?
Enquanto tenta localizá-lo na mente, falar de tudo, menos da violência, com ele e tão somente com ele, sente o mundo, o tempo escurecer. Tropeça na fraqueza: tonteira e despreparo pra arrumar os acontecimentos. O canal da mente se fecha. A imagem dele some.
Desgraça.
Desaparece aquela voz serena, aquela calmaria de lençóis de cetim que é estar aninhada a ele.
Miséria.
Como chegar perto, como aspirar de novo detrás da orelha dele aquele cheiro que só naquele cantinho da orelha dele tem?
Alisar os cabelos dele, encostar levemente os lábios, dizer eu fui violentada, meu amor.
Assim sairia do inferno, assim estaria de volta à vida.
Bastava pensar no acontecimento, deveria dizer assim mesmo o que lhe sucedera? A-con-te-ci-men-to?
Não, não tem problema, entre eles jamais existiu qualquer segredo.
Bastava pensar, pra perder outra vez voz, olfato, visão.
Comichão maldito se estrebuchando: como organizar tudo em meia dúzia de palavras?
Não, não tem problema. Mais linguagem do que ela era capaz de inventar no dia a dia de sua agência? Ora, quem mais? Podia vender qualquer coisa manipulando as imagens, as palavras, qualquer coisa, caros senhores, prezadas senhoras. Não tem problema, acharia um jeito de traduzir, amanhã, mês que vem, por que não?, agendaria tal demanda, sure, dear: eu fui violentada, assim, à queima-roupa, ficava bem?
Não podia nem conceber aquilo que o cérebro completamente perdido cochichava aos outros órgãos.
Estamos em perigo, mas ainda temos chance.
Um inimigo se espalha.
Não tente dar conta de tudo, aprenda a delegar tarefas, faça como os grandes líderes, partilhe o poder e ele se multiplicará.
De quem são essas frases ridículas?
Acabei de ser estuprada, querido, venha me buscar no meio da rua, me leve pra uma piscina de águas termais.
Nada há de ser tão sem saídas: vamos tentar outro caminho?
O corpo se eriça, qual bicho cujo caco de vidro adentrou fundo que nem noção do que é ser bicho atacado por um caco de vidro se tem mais, pois que completamente estraçalhado.
Feito carne moída a dor. Pernas se recusando a andar, olhos secando, células partidas, neurônios desconectados. Repetir pra si, pra ninguém: quase me arrancaram a vida minutos atrás. Veja: sai sangue da boca, do sexo, do ânus. Sai sangue até das unhas e não há como detê-lo. É preciso chegar em casa imediatamente, tomar banho, vestir uma roupa limpa, necessariamente de algodão, e cair na cama.
Mas voltar pra casa? Como poderia?
Torna a ver o mundo escorregadio e cai. Cai sem ouvir a resposta dele. Sem conseguir visualizar a mão cheia de pelos dele. Estendida. Salvando-a.
Cai e vai apagando. A mente soletrando the end, finish, acabou. Como uma inimiga pirracenta, a mente projetando mortalhas de seda vermelho-sangrento, úmidas num varal, orquestradas pelo vento. O último orgasmo com ele, quente de se querer morrer logo naquele quente que vem voltando ainda mais quente, ontem, ali, aquele copo com conhaque num sábado chuvoso. Uma tarde, acolá. Antes de ele confessar que amava outro cara, antes de ele querer ir embora.
Por quê, meu Deus, por quê?
Sua vida acabou, minha querida, encare os fatos.
Quando Deus se rarefaz, a vida acaba. Aprendera isso, certa vez.
La vita è finita, hai capito?
Perseguição em língua estrangeira.
Talvez fosse isto: fechar os olhos, se entregar. Por mais que amedronte, a escuridão sempre promete um alívio pra dor. Ficar imóvel, desaparecer dentro dela, poeira na luz solar.
Besta quadrada é qualquer existência. Viver não vale o esforço com que valentemente se inspira-expira.
A vida.
Miudinha.
Pedregulha embaixo dos pés.
Incrível como os olhos se entregam fácil, acomodando-se à falta de luz. O resto do corpo, porém, não. O resto do corpo é luta feroz, a fim de qualquer migalha de claridade ou lógica. Rumina, resiste, se desprega da alma. Tem vida própria, arrepio de corrente, tempestades. Enquanto a alma é longe, tão longe, tanto tempo, dias, meses, séculos atrás, enquanto a alma quer saber apenas de ficar quieta, de entregar os pontos, de não estar, a carne toma outro rumo. A carne é presente sólido, exigindo nova chance, se autoimpondo um recomeço.
Provavelmente, os vermes aproveitarão tanta energia gasta entre um polo e outro, pois são os vermes que espreitam a guerra entre corpo e alma, de camarote, aguardando o desfecho.
Vontade antiga impulsionando: vencer.
De onde, para quê, por que vem?
Não sabe. Desimporta. Reaprende.
A luz de uma vida inteira.
Quer ver a luz do sol. Não se entregar.
Desperta outra vez. Anda cambaleando, depois consegue andar um pouco mais firme, lutando contra a tontura que nasce na cabeça e vai se espalhando pelo tronco até mordiscar os pés. Nos pés e mãos, agulhas trabalham a cada passo.
Ignora-as. Esfrega os pulsos, abandona o terreno baldio para onde foi levada, à força. Na subida, avista um viaduto. A memória é suficiente pra reconhecer onde está.
Orienta-se pelo velho viaduto encravado no centro da cidade, acima de sua cabeça. Atravessa o estacionamento. Esfrega de novo os pulsos marcados.
Então, a abandonaram no centro, sem moto, sangrando, sem dinheiro.
Muito bem, muito bem.
Um rapaz vai passando, perto da árvore velha que sombreia cheia de vida uma parte da calçada. Franze a testa ao vê-la:
— Precisa de ajuda, moça?
De calças jeans e boné verde-cana. Vem correndo, assustado, ao encontro dela.
— O que aconteceu, dona?
Ela tenta calcular as horas enquanto se apoia no ombro dele.
— Você precisa de ajuda? — ele volta a perguntar, confuso.
Ela o encara. Ele torce as mãos.
Sim, queridinho, toda a ajuda possível, como não?, veja, acabara de perceber: ia precisar matar dois homens logo, logo. O pensamento foi tão rápido que ela mal acreditou: does the body rule the mind or does the mind rule the body? Ligar mais tarde pro Príncipe da Ironia, pro Deus da Melancolia Infinita e perguntar: então, querido, você já conseguiu uma resposta precisa?
Lembrar dessa música é pender de novo no vácuo. Passaram-se tantos, mas tantos anos. Ela era adolescente e queria sair do Brasil. Essa canção no café da manhã, essa canção na hora do almoço, essa canção antes de dormir. O corpo governa a mente ou é a mente quem o dirige o corpo? What’s the diference makes? Gostava até mais quando ocorria o contrário, quando o coração vinha mais ágil e tomava o centro. Uma vida dirigida pela emoção, uma vida sessão da tarde, em vez daquela tão pragmática a que estava acostumada, se pudesse escolher, o que de fato escolheria?
O rapaz pergunta novamente se ela precisa de ajuda, se fora atropelada, se estava doente. Ela balança a cabeça, negando. Se não tivesse a garganta tão seca, diria que sim, fora atropelada, não: triturada, melhor: moída. Acabaram de passar feito um trator por cima de toda a sua existência.
Nenhuma novidade aí, preste atenção: o mundo é um moinho, cantava aquele sambista. É o bonde do mal na rua, registrou aquele guitarrista, e a paz de alguém está por acabar.
Ah!, como ela precisava de socorro. Todos, qualquer um. Principalmente: um copo de água gelada. Água que soubesse cair límpida na garganta, sem arranhar ao descer pelo interior do corpo. Depois, um longo descanso entre as nuvens de algodão da infância, aquelas que de segundo em segundo se transformam em outras, mexendo-se, derramadas, entre os espaços azuis do céu. Gotas de alguma chuva nova em seu corpo, quiçá um arco-íris interrompido por trás dos prédios.
E ainda: os revólveres mais velozes do mundo, gatilhos estridentes, canhões de última geração, e pólvora, muita pólvora pra explodir todos os pênis desconhecidos pelo ar. Ou, um tanto mais primitiva, por que não?, navalhas pra arrancá-los dos corpos, leques e chumaços de algodão com álcool no nariz pra poder acompanhar a queima deles sem ter que sentir o cheiro podre infestando.
O que mais se pode desejar neste instante? Cortar fora todos os malditos pênis de todos os malditos homens do planeta. Fazer uma fogueira com eles e dançar ao redor, como fazem os índios para pedir aos deuses que mandem chuva. Porém, ela, se pudesse, pediria aos berros ao deus que houvesse naquele instante, à escuta, para mandar reinar não a chuva, mas a impotência, mandar vir não o fracasso, mas a esterilidade, mil defeitos incorrigíveis, grotescos, fatais, capazes de confundir a raça masculina, ameaçá-la, extingui-la, assim como deveria ter sido desde o princípio, fosse agora por todos os séculos e séculos.
Todavia, a garganta está mesmo complicada e uma única sentença cabe:
— Me leve à delegacia.
É tudo que pode dizer ao rapaz, apoiando-se nele apenas o necessário pra conseguir andar. Contato mínimo, antes que enlouquecesse de vez e esganasse o inocente, tão desconhecido, tão solícito.
* * *

Empurrar o corpo pra frente. So-bre-vi-ver. Mão na testa, limpar o suor. Todos os deuses dançam no jardim arruinado lá na frente. Visão embaçada de sinais. Sacudir a cabeça. Respirar. Um curativo no nariz esconde o machucado das vistas. Vem o vento no meio das pernas dizer que ela está viva. Mas não queria ouvir o vento. Ele tem uma melodia cretina. De vez em quando, joga-a em nosso ouvido. Não apenas cretina, inútil. Pele queimada de sol. Sol demais mata, o fogo se espalha, estraga a plantação. Socorro confuso de mãos competentes. Ágeis. Mãos silenciosas que limpam a sujeira, trazem analgésicos, e dizem pra ela ficar tranquila, pois tudo acabará bem.
Acabará?
Sim, isto é um hospital, relaxe, estão cuidando de ti.
Cabelos penteados pra trás, braço puxado, osso deslocado, mais dor.
Calma. Esta dor é bobinha, dá pra suportar.
Venha, Luísa.
Força.
Por aqui.
Vozes além.
Anjos?
Querer fechar os olhos e não poder. Tem fios de nylon nos olhos.
Anjos tocando coisas impossíveis de serem ouvidas.
Quem foi o miserável que pôs fios de nylon pra segurar os olhos dela?
Mania esquisita de imaginar um mundo melhor, porém, invisível. Seres do outro lado, ofertando proteção. Se fosse assim, minutos atrás, onde estariam os malditos anjos?
Gritos inesperados.
Não vai dar certo. Parem. Filhos de uma puta. É melhor desistir.
Por favor: apaga a lâmpada que é hora de dormir. Por favor: acende a lâmpada que é hora de entender.
Cheiro de éter que não havia, cama de hospital que não havia, pessoas com olhos de lobo: também não havia. É noite escura e mesmo assim o sol queima a pele sem filtro solar.
Ouvir a própria voz irromper: infeeeeeeeerno, vão embora, desgraçados, ninguém quer ouvir harpas ou canções.
Definitivamente: o tempo está acabando.
Não pode ser. Como se fosse a voz de outra pessoa: falando amenidades num quarto de hospital.
Às vezes, se esquece mesmo de passar filtro solar.
Ora, que importa? Não chateie com inutilidades assim. Quem quer saber de câncer de pele depois de um estupro?
Pro diabo, pro diabo.
A voz liberta, independente, decidida: vou arrancar cada pedacinho deles, vou arrancar com os dentes, mastigar e cuspir.
As pessoas: olham, olham. Cochicham. Horrorizadas. Piedosas.
Não consegue mais fingir: só pensa em como irá fazê-los sofrer também.
Veja: o ruído da vida é desarmônico, pega de todos os lados, entra pelos ouvidos, se espalha pelos pulmões. O ruído da vida traz fome, faz os intestinos funcionarem, a vaidade retornar. Como se misturar a ele de novo, como não estar decepada, longe dele, longe de tudo?
Ela penteia os cabelos, enquanto ouve, numa língua que não é mais sua porém sempre haverá de lhe pertencer, as notícias de seu corpo trazidas por pessoas de aventais ora brancos, ora verdes.
Os aventais ora brancos ora verdes saracoteiam dentro do quarto. Perdem-se em tortas explicações. O código deles é escorregadio. Os sons se movimentam numa fase de transição. Provavelmente quando o português ainda não era, de fato, português, mas algo indefinido, ainda pela metade, tentando, em desespero, ignorar a parte faltante: piano de cauda sem as teclas pretas; bailarino sem técnica insistindo no salto.
Que coisa desprovida de razão: escutar uma língua que fica frouxa justamente por tanto querer ser exata; mais que isso: inválida; pior: ineficaz.
Ao ouvir os aventais ora brancos ora verdes, ela pesca uma palavra aqui, outra ali. Desconfia que o que falam pode soar em espanhol a qualquer hora, mas não soa. Pode lembrar italiano de repente, pra um brasileiro cosa picola in italiano é compreensível, não? Bene, bene, guarda, sono qui, percebe? Trata-se de línguas aparentadas, aprendera tanto tempo atrás. Grazie Mille. Perfeitamente. Quase tudo é passível de conserto. Olhe nos meus olhos, ouça esta canção: faz tempo que não sei de sua vida, peça alguém pra contar como foi o seu dia, esquece essas paredes, me abrace outra vez.
Porém: não.
Todavia, não. [...]

sexta-feira, dezembro 17, 2010

sexta-feira, dezembro 03, 2010

Lançamento de Primavera nos Ossos (romance)

Dia 15/12/2010, às 19h., na Livraria Cultura do Shopping Salvador (segundo piso), haverá o lançamento do meu quinto livro, Primavera nos Ossos, que foi contemplado pelo Programa Petrobras Cultural, e está sendo publicado pela Editora Casarão do Verbo.
Confira o convite abaixo e apareça!

domingo, novembro 21, 2010


Imagem disponível originalmente em:http://notrombone.files.wordpress.com/2007/07/green-tree.jpg

Não se acostumar com a voracidade dos dias. Todo ano é certo: depois de agosto tudo foge num piscar de olhos. De repente, o tempo também vira, e no meio de um calor que se pensava infernal, cai uma chuva santa. Ameniza fora, mas raramente dentro.
Deve passar mais um dia naquela zona estranha entre o que já se sabe "dia" e uma sensação de que "algo" novo vem aí e poderá se-nos renovar, se-nos supreender.
O quê?
É possível?
Sim? Não?
No espaço do impreciso, novamente, navegamos.

quarta-feira, novembro 03, 2010


São coisas esparsas, que brilham, escorregam, fogem no ar. Talvez areia luminosa, pensei. Mas, em seguida, podia ouvir tua voz tão nítida, me atalhando, consertando, trata-se de um tipo de fuligem, é o que diz você.
Do outro lado, esta certeza: com ou sem brilho, os objetos varam o campo de visão e me dizem que você, aqui, não está. Aqui, você falta. Aqui, você zera.
São pequenezas que trazem e levam o ontem-você de mim. Coisas sobre as quais não se consegue fixar luz. Serão nossos olhos os únicos donos de toda a luz necessária pra iluminar/fazer sumir os objetos? São, de fato, os nossos olhos que vomitam esta luz fugidia sobre o mundo?

domingo, outubro 31, 2010

Nunca mais será possível partir, pensa-se no emaranhado das árvores. É preciso entender quantos caminhos foram reduzidos a nenhum. Os passarinhos de ontem brincam com aquilo que lhes chegam: desejos, revoltas, mágoas ancoradas. Ser humano não é pouco? Ou é quase nada? Um sol nas palmas das mãos esquenta ainda o que não se teve. Lá fora, cantos, zumbidos. Cá dentro, a vontade tão simples: ficar.

domingo, outubro 24, 2010


Depois, ela foge. Foge pro telhado, pro jardim. É incrível como sabe escapar rápida. Como quando éramos namorados e brincávamos de nos perder nas novas cidades que visitávamos. Chegamos a passar quase uma hora no centro do Rio de Janeiro a procurá-la, íamos e vínhamos feito barata tonta, enquanto ela se escondia num sebo de livros e vinis, divertindo-se em nos olhar de quando em quando, protegida pelas estantes.
Basta que nos lembremos disso, pequeno infinito detalhe, pra acharmos os lábios dela, soltos, descolados, como pedaço de porcelana, rindo de nós. Antes do sono, os lábios dela voam pela janela. Dá adeus, se escondem entre as persianas, em cima do telhado, molhados de chuva, os lábios dela, gritando, cantarolando, menina, tão menina, bruscamente, fica séria e nos diz que não, não será mais possível, ela está cansada, não quer mais.
Mas não, querida, dissemos a despeito de toda a tristeza que vem se achegando, sorrateira, não entregue os pontos. Ainda não os perdemos. Os sonhos, os dedos, os anéis, os venenos. Estamos vivos, vê? Acharemos a medida certa. Acredite. Continuemos. Em frente, em frente.
Não ter conseguido colher toda a beleza do que nasceu entre nós tão espontâneo, tão real, machuca demais. Porém, não façamos drama. Não há nada a lamentar. Vamos andar na cidade, fazer dos nossos pés uma arma pra romper a névoa. Arma certeira. Não há outro jeito. É preciso prosseguir.

segunda-feira, setembro 06, 2010


O sonho dentro do sonho exibe níveis variados de sonhos, espaço onde se escorrega e se afunda, se levita e se passa de um plano a outro ou se multiplica ao infinito o que somos, o que escondemos, o que desejamos ser, de modo que se pode usar a velha analogia do caleidoscópio ou da casa de espelhos ou, ainda, da babuska, uma coisa dentro da outra que está dentro da outra, e assim, sucessivamente, até se chegar a menor coisa cabível dentro de outra coisa. Esse é o fascínio do criativíssimo filme "A origem", de Christopher Nolan.
Não é necessário reproduzir aqui o enredo do ladrão de sonhos que precisa implantar uma ideia - absolutamente simples, mas como toda ideia simples, complexa - na mente de alguém, afinal, isso está em todos os sites e programas semanais sobre cinema. O que gostaria, mas sei antecipadamente que jamais poderei fazer, é sintetizar a atmosfera borgeana do filme. Dizer do prazer de ir adentrando os abismos que ele mostra, para além do conceito metacinematográfico em que Leonardo di Caprio simboliza aqueles bons cineastas que, cercados por uma equipe maravilhosa (quem dera contar no plano tão previsível da vida com aquela Ariadne!) intentam implantar qualquer coisa simples - mas fatalmente complexa - em nossa mente, por vezes distraída, por vezes aberta, por vezes na defensiva, e, muitíssimas vezes, mal preparada para receber ideias assim. De todo modo, ter sido capturada por esse filme me salvou o domingo sacal, o domingo esmaecido, como de resto sabem ser tão bem os domingos.

domingo, setembro 05, 2010

Foto by João Filho

Invaginações

A distensão
do teu amor sóbrio,
ópio e deglutição.
Ginasianos,
frutíferos corpos
que se dão ao entardecer.
Conto apenas 15 anos,
nada sei de Maiakovsky, nem de revolução.

sábado, agosto 28, 2010


Uma das decepções mais cretinas da vida é, sem dúvidas, a decepção de esperar durante uma semana, até mais, por um livro, recebê-lo das mãos do carteiro como quem recebe um bebê de poucos dias, ser tragado por toda aquela atmosfera grave, quase diáfana, que é ter em mãos um novo livro, e, quando chegada a hora de adentrar nesse universo novo, descobrimos que o livro é fraco, nada tem a nos dizer. Nos decepcionarmos com um livro é muito, muito chato. Ratos de sebos reais há anos, depois da Internet, viramos ratos de sebos virtuais também, e hoje o paraíso ou ponto de encontro sagrado dos ratos de sebo é, sem dúvidas, a Estante Virtual. Falamos aqui tão somente de leitores, pessoas que compram livros para ler, não queremos saber de colecionadores, tampouco de exibicionistas, mas, repetimos, leitores, essa corja que adora sofrer. Pois é! Por sermos leitores, nada mais que leitores, descobrimos que podemos comprar no mesmo lugar tanto livros maravilhosos quanto funcionais, podemos reaver livros esquecidos nas ratoeiras da memória, economizar na compra de livros que, mesmo com o frete, não raramente saem mais baratos do que nas livrarias, além de chegarem novinhos em folha na porta de nossa casa... Mas nem essa facilidade supera a cara de fuinha retorcida pro lado que é como ficamos quando lemos uma, duas, dez, cinquenta, cem, todas as páginas daquele livro tão esperado e, finalmente, quase sem querer, reconhecemos, sozinhos, dentro da concha da noite, inseridos no silêncio da rua, por companhia apenas os raios da luminária vermelha, reconhemos, miséria de vida!, que o maldito livro não valia um único centavo, tamanha é sua fraqueza em ser tão somente um livro ruim, um livro que jamais deveríamos ter pedido, comprado. Passamos a pensar, inconformados, talvez se não fosse tão virtual o paraíso, se tivéssemos tido a chance de folhear suas páginas, ler um trecho aqui, outro ali, perscrutar sua linguagem, talvez, quem sabe?, perceberíamos a esparrela antes de cair, inocentes, nela. Esse talvez se é um alento, uma espécie de consolo na madrugada em que se descobre o engano. Mas, agora, de dia, olhando de novo o livro abominavelmente inútil em nossa estante, nos perguntamos, será?

quarta-feira, agosto 25, 2010


Mas lutamos, lutamos todos os dias quando abrimos as janelas pela manhã e cerramos as cortinas imediatamente após às 17:30, só pra não ver o rápido acender de luzes deste bairro, desta rua. Se esta rua, se esta rua fosse minha, eu mandava, eu mandava ladrilhar, com pedrinhas com pedrinhas de brilhantes, para o meu, para o meu amor passar. Lutamos o tempo que nos vem e muito nos cabe ou sobra ou falta, lutamos o mais que podemos, perdendo fios de cabelo, cortando unhas, suando, a cada dia, a cada minuto. Não queremos ser reles, não queremos ser banais. É um esforço indecente, sabemos. Mas não choramos nem nos descabelamos. Nosso segredo, foi Macalé quem disse, é que somos rapazes esforçados... Entretanto, a qualquer momento, podemos morrer exatamente assim: na passagem de um gesto a outro. De graça, sem razão. Sabemos, desconfiamos o quanto se pode reter a vida, estreita, estranha, dentro de nós. Reparamos: as árvores já não estão tão secas, o tempo já não esfria tanto quanto ontem. É dos dias banais que extraímos singela significação. Passamos um tempo branco de fala ruim, de gestos vagos. O pior de tudo é quando tentamos explicar as coisas a miúdo, sem ter palavras belas, sem motivações. Olha, hoje é um dia como outro, somos gente, estamos aqui. Poderíamos apenas nos calar, é claro. Mas não, não queremos.

domingo, agosto 22, 2010


A velhice, dizem, assim como o amor que amadureceu, perdeu o frio na barriga e a tensão da incompletude, nos leva a uma espécie de resignação que pra alguns é paz, pra outros é decrepitude. Todavia, envelhecer continua sendo um processo complexo, que ultrapassa a questão da idade e pode ser reiventado pelos próprios atores que o protagonizam. No melhor filme dessa estação, "Hanami - cerejeiras em flor", a decrepitude está nos mais jovens, filhos do casal de idosos Trudi e Rudi. Enquanto seus pais conseguem, cada um a seu tempo, se reencantarem com a vida e consigo mesmos, seus filhos são representados como frios, distantes, sem tempo, impacientes, cruéis, mortalmente chatos. Esse rencantar com o mundo, com o outro, com as miudezas da vida, está nos mais velhos, especificamente no casal protagonista, e constitui a beleza do filme. O ponto de partida da história está na notícia que Trudi recebe: o marido, Rudi, tem poucos dias de vida, talvez mais alguns meses, dizem os médicos, que aproveitam para lhe aconselhar a viajar com o marido, quem sabe realizar uma aventura, um sonho. A voz de Trudi, em off, nos comunica, no entanto, o impasse: o marido detesta aventuras, detesta novidades, é daqueles seres que preferem a rotina, os velhos hábitos, o conhecido. Quem realmente gosta de aventuras, deseja ir ao Japão, é ela; ela que está saudável, ela que se coloca como mediadora entre o marido e o mundo, ela que cultiva o gosto pela arte, pelo drama. Dentro desse pequeno impasse, contornado pelo amor que nutrem um pelo outro, o filme se desenvolve. Cheio de sutilezas, rico de pequenas simbologias, lento, por vezes cruel, por vezes sublime, o filme vai construindo as relações entre homem-mulher, pais-filhos, irmãos-irmãs, nora-sogros, Ocidente-Oriente. Ótimo filme. Veja você também.

Ficha Técnica:
Título Original: Kirschbluten - Hanami.
Origem: Alemanha / França, 2008.
Direção: Doris Dorrie.
Roteiro: Doris Dorrie.
Produção: Harald Kugler e Molly Von Furstenberg.
Fotografia: Hanno Lentz.
Edição: Frank C. Muller e Inez Regnier.
Música: Claus Bantzer.

sábado, agosto 21, 2010


[...] Não lhe digo nada. Não atendo sua ligação. O zumbido se junta a milhares de chamados perdidos na capital. A essa hora, tão cedo, ela pensa: ele deve ter saído com alguém. Depois, me lê em silêncio. Ouve alguma música que eu lhe mandei. Ela está no tapete da sala, deitada. Eu, na escuridão, sem nuvens, sem estrelas, só imensidade de luzes e mormaço, vejo-a.
Penso em salvá-la de alguma forma, indo a seu encontro. A solidão dela é um círculo de fogo, mesmo que eu queira, jamais conseguirei ultrapassá-lo. Sinto apenas. As ardências. Ela diz que dói. Ela costuma dizer, às vezes, sozinha, pra casa, pro bairro velho onde mora, pro mar, pra ninguém, que dói. E nesse instante ela nem sequer chora.
Dói.
Pesado. Mais pesado que essa maldita história que nos consome. Dói, ela diz. Sozinha. Sem lágrimas, sem mão comprimindo o peito.
Todavia, não, não acabará assim. É a minha vez de buscá-la pelo telefone, ligar feito um louco pra sua casa, pro celular, mesmo sabendo que ela desligou o telefone logo que me chamou e eu não atendi. Talvez até tenha saído.Talvez procure velhos amantes que a tratem melhor do que eu. Vai a lugar nenhum. Dirigindo em alta velocidade pelos bairros da velha cidade, pra lugar nenhum ela vai, penso, vendo a linha sem fim de seu para-brisa avançando por Ondina, Rio Vermelho, Amaralina, Pituba, Costa Azul, Boca do Rio... Oh, não. Pare um instante e atenda, por favor... Ouvindo Bob Dylan? Stones? Morrissey? Pelo Corsário, Jaguaribe, Patamares, Piatã... saindo fora do alcance dos meus olhos.
Dias vão passar, eu sei. Vou dormir um pouco e voltar a pôr minha cabeça pra funcionar.
Meu coração às vezes é mais triste que o dela. Quando ela chega bem pertinho de mim e dá de ser mulher até não poder mais, me encarando, passeando com a mão no meu peito, encostando a testa no meu peito, de leve, como se me espreitasse através da camisa. Sinceramente: não sei nem o que pensar. De repente, ela diz: por que o tempo esfriou assim? Eu não trouxe nenhuma roupa de frio... E eu, que deveria abraçá-la forte, dizer que tenho dezenas de camisas, casacos de frio no guarda-roupa, que ela pode pegar o que quiser, que no meio do ano é assim mesmo, de repente chove, de repente esfria, eu, em verdade, nada falo, nada sei. Apenas fico. Dentro do calafrio que é vê-la tão mulher, aninhada no meu peito, como só elas, as mulheres, conseguem ficar: mudas, congeladas, grudadas, como se fossem um apêndice. Mas não, sei, sabemos, que não são.

segunda-feira, agosto 16, 2010

Editora Casarão do Verbo


Quem for à Bienal de São Paulo, não deixe de conferir o stand da Editora Casarão do Verbo, de Rosel Soares. Trata-se de uma pequena-grande editora baiana que aposta no bom gosto e na qualidade de suas publicações. Em outubro, a editora Casarão do Verbo lançará meu romance Primavera nos ossos, que ganhou o Edital Petrobras para Criação Literária. Dentre os livros já lançados pela Casarão, destaco a antologia Travessias Singulares, contos que versam sobre a relação entre pais e filhos, entre os autores estão Miguel Sanches Neto, Nelson de Oliveira, Silviano Santiago, Hélio Pólvora, Carlos Heitor Cony, e meu amado João Filho. É uma bela antologia.

domingo, agosto 15, 2010


Se você soubesse o tanto de reajustes entre o acordar e o prosseguir... ah, se soubesse! O dia é vazio, as possibilidades minúsculas, mas se vai tentando, há tanto, vai-se tentando transformá-las em gigantes. Voltar ao luxo de estar no centro de si mesmo, não à deriva. Baixa temperatura. Suor saindo fácil sob a pressão do algodão molhado. Pensar na morte não ajuda, na vida muito menos. Vai ficando tarde por dentro. A escuridão faz traça, qualquer pensamento é inutilidade correndo nos fios dos postes. Ou no ralo da pia. Ou no barulhinho das plantas. Beber demais ora ajuda, ora não. Mas há um costume estranho, pegou-se por aí: encher lenços de éter e aspirar até à exaustão. Outro: pingar mercúrio num pedaço de espelho. Fragmentos de prata com escarlate. Ignorar as dores alheias que por ventura empestam o ar do mundo. Que mundo?
Em alguns momentos, você sabe, podemos ser tocados pela sombra das árvores. Resto de felicidade mofada que por acaso o peito escondeu. Fumar sempre duas marcas de cigarro alternadas. Sentir-se severamente frágil, uma saudade absurda, invariavelmente do que não existiu.
Força antiga no varal. A boca retorcida pinga água com sabão. Querer estar perto dele. Já. Pra ninar o silêncio das noites e dos dias claros, de chumbo ou de sol. Chamaremos em pensamento. Põe tua mão aqui no meu colo, meu amor. Lá do outro lado do mundo, se você soubesse o tanto de reajuste... ah, se soubesse.

sexta-feira, agosto 13, 2010



—Você sabia que Hemingway era gay, porém, não dava o cu porque tinha hemorroidas?
— Cada maluquice que você me inventa!
— É sério. Eu soube disso num congresso aí.
— Mentira sua.
— É verdade, eu juro... Ouvi numa palestra, na USP.
— Não sabe nem mentir! Uma hora é um congresso, depois uma palestra na USP. O que você foi fazer na USP?
— Eu viajo muito, meu caro...
— Sei, e nessas viagens vai à USP descobrir que Hemingway é viado e tinha hemorroidas?
— E daí? Não sei por que você está rindo desse jeito. Não tem nada de mais. Pode-se descobrir qualquer coisa em qualquer lugar, é um sinal dos novos tempos. A USP é um centro de pesquisa, ora! Podemos descobrir mil coisas lá.
— Inventa outra.
— Criatura! É verdade. Hemingway era viado.
— Não, não era.
— Estou lhe dizendo, ele era enrustido, os professores disseram.
— Pois estavam mentindo.
— Mas eram professores universitários, mestres, doutores...
— Mentirosos, que nem você.
— Eu nunca minto... Que injustiça.
— Afinal, quando você vai parar de falar bobagens e me dizer por que me chamou aqui?

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— Detesto homens que choram, a menos que sejam como Bebeto, aquele gatinho.
— ...
— Você se lembra do Bebeto, que jogava no Vasco da Gama? Era um gatinho... A beleza é o segredo de tudo, já diria André Gide. Eiiiiiiiiiiii, você está me beliscando?
— Primeiro, Gide nunca disse isso. Pare de inventar citações chulas e dizer que pessoas famosas são autoras delas. Você não me engana. Segundo, pro seu governo, o rapaz jogava no Flamengo...
— Quem? O Bebeto?
— Foi artilheiro do Flamengo...
— Não, senhor. Bebeto? Ele era vascaíno doente!
— O cara jogava no Flamengo...
— Você é maluco, logo se vê que os homossexuais não entendem coisa alguma de futebol... Bem, deixe eu te explicar, não é minha função no mundo, mas o que podemos fazer senão ajudar ao próximo? Tome nota: o Bebeto, aquele gatinho, jogava no Vasco do Rio. Entendeu? E de lá foi pro exterior.
— No Vasco do Rio? Eu ouvi direito?
— Por que o riso?
— Tststststststststs... Como se houvesse outro Vasco...
— Há outro Vasco, sim, em Sergipe.
— Ora, ora, uma mulher entendendo de futebol.
— Mas tá na moda as mulheres entenderem de futebol... Tem até comentarista mulher numa TV a cabo aí...
— Pois sinto te informar que você como integrante da moda feminina é um fracasso, minha cara, porque o Bebeto saiu do Vitória direto pro Flamengo.
— Mas que obsessão com este maldito Flamengo!
— Pois se é verdade... Ele nem precisou se acostumar ao novo uniforme, já que o Flamengo e o Vitória são praticamente a mesma camisa... Hehehehe.
— Vitória, você disse?
— Sim... O maior time baiano.
— Não conheço nenhum time chamado Vitória. É estranho porque conheço todos os times baianos. Daqui de Salvador? Você tem certeza?
— O último campeão baiano. Meteu 3 no seu Bahiazinho, só pra clarear sua memória...
— Realmente, nunca ouvi falar... Me desculpe...
— Deixe de ser cínica.
— Mas se não sei do que você está falando, meu Jesus... Aliás, o problema dos gays é este: trazem informações e referências que ninguém conhece, somente eles, é um gueto fechadíssimo, cheio de códigos estranhos: fulana é uma deusa, não sei quem é maravilhosa, Quatro casamentos e um funeral é imperdível, mas Filadélfia é postiço, não serve... Imagina... E aquela baboseira de chamar as pessoas de ótimas? A ótima fulana, a ótima sicrana... Coisa mais imbecil... Jamais sabemos direito do que estão falando... Um time da Bahia chamado Vitória? Não conheço, nunca ouvi falar... Conheço o Baêeea, o Galícia, o Fluminense de Feira.
- Chega, não dá pra falar contigo.
- Comigo? Ora, o que foi que eu fiz? Sou uma pobre mulher solitária que lava calcinhas, na pia do banheiro, de madrugada.
- Isso é Bruna Lombardi?
- Exato. Filmes Proibidos. Você se lembra?
- Como não?!

sábado, junho 05, 2010

Um ruído de ferro contra a calçada de pedra. Carrinho de paralítico. Simples. Sentou pra ouvi-lo. Deve ser aquele mendigo da rua 08. Tentou acompanhar trincando os dentes. Um segundo enorme de barulho, depois, nada, tudo cessou. Passou meio século. De repente, barulho de asas. Pássaro. Não. Asas pesadas e grandes. Pato. Ou marreco. Galinha não pode ser, geralmente cortam-lhes as asas. Só havia uma frestinha de luz na porta. Haveria sorte hoje? Quando o barulho ou o ser que o produzia se encontrava naquele campo minúsculo de claridade, podia se arrastar até lá e descobrir. Mas tinha que ser dia de sorte. Às vezes, não era. Reconhecia-os vez em quando, um estampido parecido com o de arma de caça e ah!, é hoje! Então, lavava o rosto e esperava a completa solidão pra começar a descortinar imagens. Delas tirava vitalidade com a qual ia enchendo vagamente os pulmões para atravessar os dias seguintes, dias de não-sorte. Nesses, contentava-se em mastigar barulhos. Choro de criança, bombas de São João. Pés vagarosos, pés velozes, pés ritmados, trotar de cavalos, carroça de boi, pés que pedalam, sapatos. Leiteiro. Cachorros brincando, cachorros farejando, cachorros estranhando. Música. Meninas indo, meninas vindo, meninas rindo, meninas gritando. Chuva. Fósforo riscado. Bem-te-vi, pardais. Voz rouca gritando, voz sussurrando: amor. Chocalho. Tosse. A vendedora de doces. O vendedor de café. Gente que sai pro trabalho, gente que volta pra casa. Pão. Cheiro de pão dentro de sacos de papel. Cordas de violão afinando. Pombos ciscando. Pedras atiradas, gatos fugindo, latas voadoras, sacos de lixo que o vento transforma em pássaros. Um coração no escuro da cidade. A morte tinindo. Vida dentro de músculos. Uma bota pesada, uma porta que abre rangendo, alguém reclama de ter a unha encravada. A realidade de um ruído que sempre machuca: um homem ainda muito bonito quase lhe estraçalhando os dedos do pé. Horas confusas de cores escuras, azuladas, violetas, que entram no campo de visão zumbindo e maltratando que nem abelhas. Mas, afinal, hoje seria dia de sorte? Espreitou pela fresta e, valha-me Deus, que mau agouro, um urubu! [...]

domingo, maio 02, 2010


Não foi explorada:
palavra de sangue e gás.
Não foi regurgitada:
aversão.
O nada dito entre os dentes:
língua presa, saliva que não vem.
Puta, teus cabelos nos quintais,
teu nascimento atropela a cidade burocrata.
Falta de proporções tange nuanças portuguesas,
borboletas
e este país que não quer mudar.
Fugiremos dele, então,
prum tempo escuro,
um tempo sem luzes
nem facho dissipado.
Por favor, escute: o que não vivemos juntos me crava os ombros,
ameaça de queda os dentes, faz os bicos dos seios sangrarem.
Assim: cadafalso.
Assim: ruína.
Assim: sem chances.
Cheirando noite e dia a morte, a desorientação.
A tua borboleta tatuada: Deus em letras verdes,
o suor fazia Deus reluzir no desenho.
Boca que sopra e abocanha,
a obscenidade da boca:
retém.
Digamos que Deus arfa e gira
- Deus faz amor muito bem –
e deixa de se expressar.
O silêncio inteiro, o vento.
A toalha de flores sobre a mesa.
O elefante sobre a mesa.
O pus no bule de café.

sábado, abril 03, 2010


Imagem by katia Almeida
Uma música que se altera. Dias há em que é somente um sopro entorpecendo; um voo, um esquecer as agulhinhas, muitas, tantas; um novo poder voar por uns segundos.
Noutros dias, a violência do farfalhar das cortinas bate contra os sentidos; cérebro e dentes rangendo; tremores e nascimentos; umas células desgrudando; pelos poros capilares, é possível sentir algumas delas morrerem, outras, substituindo-as em seguida.
Loucura. Apenas loucura.
O tecido das cortinas cinzentas.
Sim, somente isto.
Quando as cortinas se movimentam, é possível ir além. A carne escancara as portas. Ou antes, as portas é que são escancaradas pela corrente de zumbidos, chicote de vento nas cortinas, as cores feito sangue fluindo, e a vertigem que aumenta o poder de sentir, que desfaz o limite corpóreo, apaga o que restringiu o corpo, desde o princípio, a ser somente corpo.
Liberdade de voar junto ao tecido. Como a textura das mantas verdes ou azuis que cobrem os primeiros dias de vida. Os sons que são arrancados das dobras do tecido, que continuam a se estender, chicote e chocalho, minutos ruidosos que cessam repentinamente, depois recomeçam.
Uma música calada.
Horas virão em que tudo restará calmo, dobras lentas se abrindo feito leque. Param. A noite, a sopa, o café. O pão. As mãos de alguém se ocupando de outro alguém. A sagrada água com que se lava os resquícios do dia. Falas mínimas. Quase tudo está morto, querida. Os olhos vão sumindo. Madrugada. A música retornando: vai chover. Ninguém pra fechar a janela. Os pingos entrarão. [...]

quinta-feira, abril 01, 2010



Estouravam cliques na cabeça enquanto dormia. Não sabia se cinema ou fotografia. Acorda variado, buscando qualquer instrumento de conexão com a vida concreta, ali, na frente, à espera. Sair do sonho é um banho lento de luz abocanhando o quarto. Longo tempo em que não se reconhece aquele outro ser esparramado, diluído. Até achar os fios. Não precisa ser inteiramente tecido. Um fio ao acaso serve. Basta que se conecte de novo. Provisória e aleatoriamente. Por exemplo, hoje, às 2:40, foi o rádio-relógio de números verdes brilhando no escuro. Amanhã pode ser a presença invisível do mar que habita esta cidade. Ou o barulho da rua. Quiçá, o corpo do outro descoberto, respirando, tão perto.

terça-feira, janeiro 19, 2010


Yo creo que desde muy pequeño mi desdicha y mi dicha al mismo tiempo fue el no aceptar las cosas como dadas. A mí no me bastaba con que me dijeran que eso era una mesa, o que la palabra "madre" era la palabra "madre" y ahí se acaba todo.
Al contrario, en el objeto mesa y en la palabra madre empezaba para mi un itinerario misterioso que a veces llegaba a franquear y en el que a veces me estrellaba.
En suma, desde pequeño, mi relación con las palabras, con la escritura, no se diferenciade mi relación con el mundo en general. Yo parezco haber nacido para no aceptar las cosas tal como me son dadas.
(Julio Cortázar)

sábado, janeiro 09, 2010




[...]Sonho que você está logo mais na esquina, me esperando todos os dias pra tomarmos café ou simplesmente ir ao cine. Então lhe digo: ponha menos açúcar, ou digo tão somente: prefiro os filmes mudos – quem sabe os guardiões de nossa verdadeira língua?
Agora: feche os olhos, nada mais importa.
Fale-me de tua gente, do amarelo de teu país. Funda meus telhados de concreto aos teus de barro ou de Eternit, quero saber com que delicadeza teus dedos e tua boca percorriam os corpos de tuas mulheres. Fale-me delas, das mulheres, eu falarei dos meus homens.
Perguntas são inúteis, entre nós só movimentos e lembranças cabem.
Gire comigo, fale do teu tempo de espera, falo do meu.
Sempre soube que tu virias, do norte ou do sul, de outras terras, das geleiras, até do inferno, sabe Deus. De bem dentro de mim, da fome que faz este mormaço parecer incêndio. Você viria, eu sempre soube. Ignorei os amores passadiços, as ocupações que garantem a sobrevivência. Fazia tudo rápido e malfeito e, quando nada conseguia, segurava a fraqueza do corpo, do cérebro, da alma sem alimento. Por isso fiquei assim: esqueleto doendo de madrugada, mas tenho absoluta certeza: você não vai se importar.
Imbecil que és. Imbecil que sou.
Todos os dias verei você sair do fogo do isqueiro, com um punhado de açúcar e disposto a cerrar as cortinas para que meus olhos não vejam o centro da tela. Mesmo quando ao meu lado não existir companhia alguma pra partilhar o cigarro aceso, você deve comigo estar.[...]

In: Cântaro, publicado no Jornal A Tarde em maio de 1999, disponível integralmente em: http://www.revista.agulha.nom.br/1aleila.html

Em Não se vai sozinho ao paraíso, primeiro romance que integra a trilogia místico-erótica de Állex Leilla — cujo centro são as micro-...