sexta-feira, agosto 22, 2008

[...]
Fácil é pensar em falar com ele, não como se sofresse um súbito acesso de fuga e, confusa, estivesse dialogando com o que não há. Não isso de borboleta errante procurando pouso em flores baldias. Que isso, apesar de bonito, é torto e não ameniza dor nenhuma. Nada de fuga, reticências, abstrações. Se pudesse estar olhos nos olhos com ele, comentar qualquer bobagem — não da dor, da dor não, agora: não, por Deus! —, cercar-se de coisas leves, comentários sobre a primavera, sobre café expresso com creme, sobre a temperatura certa do vinho tinto, sobre cigarros, sobre as condições do tempo em Salvador. Algo meio folha de amendoeira ao vento: bela, leve, cheia de retrâncias avermelhadas. Que amigos, amigos verdadeiros, ela leu em algum lugar e ainda se lembra, precisam apenas de proximidade, não de conteúdo ou confissões, precisam é estalar a língua no ar, espairecer. Uma conversa meio apoio para o corpo, uma conversa um tanto pilastra, coluna grega pra escorar a dor. Escore esta hemorragia pra mim, meu querido. Faça em segredo uma simpatia pro corpo se endireitar de novo, pra dor ficar comportadinha. Não tão aguda. Boazinha, na vitrine, como dizia Baudelaire, re-dizia Ana C., re-diremos agora nós. Compreende?
Tão simples pedir ajuda a ele. Tão impossível obter.
Um demônio toca piano.
Ou seria clarineta?
Um demônio dança longe.
Ou seria dentro?
Enquanto tenta falar com ele, tropeça na fraqueza: tonteira e despreparo pra arrumar os acontecimentos. O canal da mente fecha. É verdade: a imagem dele some. Que desgraça. Desaparece aquela voz serena dele, aquela calmaria de lençóis de cetim que é estar aninhada nele. Miséria. Só pensa em chegar em casa imediatamente, tomar banho, vestir uma roupa limpa, necessariamente de algodão, e cair na cama.
Mas voltar pra casa... Como poderia?
Torna a ver o mundo escorregadio e cai.
Cai sem ouvir a resposta dele. Sem conseguir visualizar a mão cheia de pêlos dele. Estendida. Salvando-a. Cai e vai apagando. A mente soletrando the end, the end, como uma inimiga pirracenta, a mente projetando, mortalhas de seda vermelho-sangrento, pra lá, pra cá, o último orgasmo com ele, ontem, ali, aquele copo com conhaque num sábado chuvoso, antes de ele confessar que amava outro cara, antes de ele querer ir embora, por quê, meu Deus, por quê?, sua vida acabou, minha querida, já era, encare os fatos, sua vida è finita, entendeu?
Sì, sì, va bene, ho capito, non c’è male, arriverdeci.
Perseguição em língua estrangeira.
Talvez fosse isto: fechar os olhos, se entregar. Por que não?
Por mais que amedronte, a escuridão sempre promete um alívio pra dor. Ficar imóvel, desaparecer dentro dela, feito poeira. Besta quadrada é qualquer existência, já se sabe: viver não vale o esforço com que expiramos.
A vida.
Miudinha.
Pedregulha embaixo dos pés.
Incrível como os olhos se entregam fácil, acomodando-se à falta de luz.
O resto do corpo, porém, não.
Luta, força o retorno à claridade.
Rumina.
Resiste.
Se desprega da alma, tem vida própria, arrepio de corrente, tempestades.
O resto do corpo é presente sólido, se impondo. Enquanto a cabeça é longe, tão longe. Tanto tempo. Dias, meses, séculos atrás. Provavelmente, só os vermes aproveitarão tanta energia gasta entre um e outro, pois são os vermes que espreitam as guerras, de camarote, aguardando o desfecho.
É isto?
Porra nenhuma.
Vontade antiga impulsionando: vencer.
De onde, por que vem?
Não sabe.
Desimporta.
Reaprende.
A luz de uma vida inteira.
Quer ver a luz do sol. Não se entregar. Viver.
Desperta outra vez.
Anda cambaleando, depois consegue andar um pouco mais firme, lutando contra a tontura que nasce na cabeça e vai se espalhando pelo tronco até mordiscar os pés. Nos pés e mãos, agulhas trabalham a cada passo.
Ignora-as.
Esfrega os pulsos, abandona o terreno baldio para onde os dois homens a levaram, à força. Na subida, avista um viaduto. A memória é suficiente pra reconhecer onde está. Orienta-se pelo velho viaduto encravado no centro da cidade, acima de sua cabeça. Atravessa o estacionamento São Raimundo, embaixo dele. Esfrega de novo os pulsos marcados. Então, a abandonaram no centro, sem moto, sangrando, sem dinheiro, sem nada. Muito bem, muito bem. Um rapaz vai passando, perto da árvore velha que sombreia cheia de vida uma parte da calçada. Franze a testa ao vê-la:
— Precisa de ajuda, moça?
De calças jeans e boné verde-cana.
Vem correndo, assustado, ao encontro dela.
— O que aconteceu, dona?
Ela tenta calcular as horas enquanto se apóia no ombro dele.
— Você precisa de ajuda? — ele volta a perguntar, confuso.
Ela o encara. Ele torce as mãos.
Primeiro “moça”, depois, “dona”, e, por fim, “você”. Uma gradação masculina?
Sim, queridinho, toda a ajuda possível, como não?, veja, acabara de perceber: ia precisar matar dois homens logo, logo. O pensamento foi tão rápido que ela mal acreditou: does the body rule the mind or does the mind rule the body? Ligar mais tarde pro Príncipe da Ironia, pro Deus da Melancolia Infinita e perguntar: Stephen, querido, você já conseguiu uma resposta precisa?
Mas lembrar daquela música, naquele instante, é pender de novo no vácuo. Passaram-se tantos, tantos anos. Ela era adolescente e queria sair do País. Essa canção no café da manhã, essa canção na hora do almoço, essa canção antes de dormir. O corpo toma o leme ou a mente é quem dirige? Quer dizer, realmente importava saber? Gostava até mais quando ocorria o contrário, quando o coração vinha mais ágil e tomava o centro. Uma vida dirigida pela emoção, uma vida sessão da tarde, se pudesse escolher, como diria não?
O rapaz pergunta novamente se ela precisa de ajuda, se fora atropelada, se sentia alguma parte do corpo quebrada.
Ela balança a cabeça. Se não tivesse a garganta tão seca, diria que sim, fora atropelada, não: triturada, melhor: moída. É exatamente isto: acabaram de passar por cima de toda a sua existência, o moinho da vida, já cantava aquele sambista, o bonde do mal na rua, registrou aquele roqueiro, lembra?, triturou seus sonhos mesquinhos, reduziu as ilusões a pó. E agora, meu querido, ah, como ela precisava de socorro. Todos e qualquer um. Principalmente de um copo de água gelada. Água que soubesse cair límpida na garganta, sem arranhar ao descer pelo interior do corpo. Depois, um longo descanso entre as nuvens de algodão da infância. Aquelas que de segundo em segundo se transformam em novas formas, mexendo-se, derramadas, entre os espaços azuis do céu. E ainda: os revólveres mais velozes do mundo, gatilhos estridentes, canhões de última geração, e pólvora, muita pólvora pra explodir todos os pênis desconhecidos pelo ar. Navalhas pra arrancá-los dos corpos dos homens, leques e chumaços de algodão com álcool no nariz pra poder acompanhar a queima deles sem ter que sentir o cheiro podre infestando. O que mais quer neste instante: cortar fora todos os malditos pênis desconhecidos de todos os malditos homens desconhecidos do planeta. Fazer uma fogueira imensa com eles e dançar ao redor, como fazem os índios para pedir aos deuses que mandem chuva. Porém, ela, se pudesse, pediria aos berros ao deus que houvesse naquele instante — incompetente, de plantão, à escuta — para que mandasse reinar não a chuva, mas a impotência total, mandasse reinar o fracasso, mandasse imperar a esterilidade, mil defeitos incorrigíveis, grotescos, fatais, capazes de confundir a raça masculina, ameaçá-la, extinguí-la, assim como deveria ter sido desde o princípio, fosse agora por todos os séculos & séculos, amém.
Todavia, a garganta está mesmo complicada e uma única sentença cabe:
— Me ajude chegar à delegacia.
É tudo que pode dizer ao rapaz, apoiando-se nele apenas o necessário pra conseguir andar. Contato mínimo, antes que enlouquecesse de vez e esganasse o inocente — será que algum deles é inocente? —, tão desconhecido, tão solícito.
[...]


Trecho do capítulo 01 de Primavera nos ossos, obra selecionada pelo Edital de Cultura "Criação Literária", da Petrobras, 2007/2008, publicação prevista para dezembro de 2008.

domingo, agosto 10, 2008

Há uma voz pedindo silêncio na manhã azul em que muitos ganharam, muitos perderam.
Dizem os deuses: coisas são voláteis, coisas respiram,
então, havemos de lembrá-las, havemos de esquecê-las.
A temeridade do lamento afoga a manhã,
combatendo como numa guerra o silêncio solicitado.


***
Se você pretende ser
lilás,
etérea,
difusa,
suicida,
às 3 da manhã,
saiba,
antes que aquela porta se abra
às 3 da manhã
e espalhe entre as flores
a ajuda que sua voz jamais formulou
que todo caldo entorna devagarinho na estrada,
que tudo leva a curvas desconhecidas,
a rótulas misteriosas
que o que hoje nos impele à inação,
amanhã nos leva a dançar
pierrôs perdidos,
columbinas esgarçadas,
arlequins inquietos,
a perguntar, a responder,
como na canção italiana,
che cosa so?, che cosa sei?, che cosa sai?
Niente, è vero.
Ninguém sabe coisa alguma entre o céu e o mar.
Eco il nostro destino: parlare, parlare,
come la prima volta.

sábado, agosto 02, 2008

Mas não era possível terminar assim:
seda rasgada justamente onde a seda lilás ficaria,
não podia ser tão abismo e, por isso mesmo,
pontiagudo, pedregulho, arranhento.
Uma vida que se desliza
- marfim, âmbar, amarelo-pêssego -
quase nunca círculo, tampouco linha reta,
uma vida que naturalmente se inventa
- Bandeira, Cecília, Quintana -,
assim no aconchego do dentes
e das coisas derradeiramente precisadas, escolhidas.
Que terminasse de outra forma:
louça partida, cristal em mil pedacinhos, água escorrendo brusca e, lá na frente, ficando intransponível, pardacenta, suja.
Mas não dessa forma: seda esgarçando,
morre-não morre,
lupa aumentando os mil pontinhos do corte,
lupa multiplicando, expandindo.
Não, definitivamente não era possível terminar assim.

Em Não se vai sozinho ao paraíso, primeiro romance que integra a trilogia místico-erótica de Állex Leilla — cujo centro são as micro-...