sábado, maio 24, 2008

Pensa constantemente que o que lhe ocorre em doses diárias, no final dos tempos, transforma as coisas mais difíceis em aceitáveis. O mundo depende bestialmente da facilidade. Ou da facilitação. Devemos nos facilitar uns aos outros, mas principalmente a nós mesmos. Era o que pensava, às 22:30, tomando vinho barato, num bar da praça Marechal.
E conseguia?
Ela conseguia, às vezes sim, às vezes não. Por exemplo, pela manhã. O sol nascia ameno e ela saía pra passear. Ia à esplanada da Igreja receber o vento são-franciscano, olhar e fotografar as estátuas dos apóstolos, subir o Morro, visitar locas guiada pelos meninos que por ali ficavam, maltrapilhos, pedindo esmolas. Imaginava de onde viria aquele tanto de meninos de rua naquela cidadezinha. Não se lembrava que existia tanta pobreza na cidade onde nasceu.
Só conseguia se lembrar de dois bairros totalmente pobres na época em que viveu ali: a Nova Brasília, à beira do rio, cheia de casas de barro e gente que pescava, e o bairro das Casinhas, que era formado por casas populares tão pequenininhas, a esmola que o governo distribuíra às pessoas atingidas por uma enchente terrível num tempo em que ela, Maria Madalena, nem sequer estava por aqui.
Mas nada importava: a hora é de andar.
Andar, andar, essa é a sua música matutina. Ela andava muito pelas ruas de casas feias, perambulava entre as barracas da porta da Igreja, comprando bobagens: chaveiros de madeira, canetas com o nome da cidade, cinzeiros, barcos – ela era uma mulher que colecionava barcos –, burrinhos, carrancas em miniatura. Noutra manhã, ia à ponte, invejar os que tinham bicicleta e passavam olhando-a sem saber quem era. Mas quando o sol ia embora, a dor de cabeça começava, e a quase-ordem que lhe punha pra fora da cama, cheia de energia – devemos nos facilitar uns aos outros, mas principalmente a nós mesmos –, essa artimanha tão útil pra se começar o dia, perdia importância e não lhe valia mais. [...]
In: Obscuros, 1999.

domingo, maio 04, 2008

M.o.r.t.e.
IV

Só entre mim e a cauda de cavalo dele vão ficar:
fotografias, pirilampos, insetos no ar, pêlos no colchão,
algodão, curtos-circuitos, e a ausência de paz.
Você me contou naquele dia cinzento
que se chamava água-da-vida a cachaça que matou Pessoa.
Água-da-vida fez um rombo no fígado dele,
Água-da-vida o levou pra dentro da língua, de nós.
Movimentos, estrelas, barcos soltos pela casa,
os cheiros do teu corpo: você pintado, óleo sobre a tela,
tua boca dizendo: adoro cerejas.
Refazer o passado é morrer.
Os cadernos estão descendo na chuva,
aqui, arrisco ficar guardada,
por isso me molho lá fora, na nebulosidade azul-branca-borrada,
roxa, muita, tanta, quanta saudade de ti.
Sinto saudades de ti e é sempre como se desembaçasse vidros molhados de chuva.
Sempre, sempre, sempre: que palavra linda!, é tempo de retê-la na boca lentamente,
mastigar, conhecê-la, devolvê-la à língua.
Amanhã, não agora: nesse tempo úmido que se fecha sobre nossos corpos
e se abre sobre o mundo.
Amanhã, te peço, te falo no escuro,
amanhã aconteceremos, dentro da chuva.
Há de haver alguma chuva,
penso, quero, decido: amanhã.

Em Não se vai sozinho ao paraíso, primeiro romance que integra a trilogia místico-erótica de Állex Leilla — cujo centro são as micro-...