domingo, fevereiro 24, 2008



[...]
Que mais querem nossos olhos? Nossos olhos querem e isto sempre quer dizer: mais.
O tempo marinho nas dobras, nos arranhões, na tinta.
Fomos crianças em cada tempo. Você trepou em árvores, usou estilingue.

Tempo bem velho e descorado: você me conta.
Infância: água sanitária.
Em minha terra não se fala badoque, mas estilingue.
Eu adorava vestir minhas bonecas com calcinhas e meias vermelhas. Pintá-las de esmaltes, borrá-las de batom e tinta guache. As caras de plástico pra sempre arruinadas.
Minha mãe brigava: nunca mais eu ia ganhar nada no natal.
Os natais matam a infância.
Me lembro agora pra no instante seguinte esquecer: o quintal da casa dos meus pais era cheio de varais e, de noite, invariavelmente, eu sonhava que eram fios de postes que me atrapalhavam os vôos quando através do pedaço de céu do quintal eu tentava fugir.
Pedaços de céu, oh, não, meu pai & minha mãe, minha professora & meus irmãos, pedaços de céu me maltratavam, mas, quando menina, jamais poderia saber: são as piores prisões.
Viro o olho pro teu lado esquerdo: o navio já se foi. Salvador o escondeu. O sol idem, mas já era fraco, pra que queremos sol se estamos tão abandonados?
Meu corpo volta a sentir sede do teu.
Eu amo teu corpo. Deixe que te diga de uma vez por todas: sou terrivelmente indefesa diante de pêlos.
Dos teus pêlos. Dos pêlos de qualquer homem.
Te revelo a grande dor da minha vida: estou cheia de celulite e estrias, estou envelhecendo. Mas você, mesmo assim, ainda me chamará de menina.
Não é agudo isso?
Eu não quero ser menina, desde cedo, evito ser.
É com passos de mulher que percorro o mundo. Quisera, nas pegadas, formar uma erosão ou larva de vulcão profunda que nos liquidasse – a mim, a ti, a ele – de vez.
Eu sou uma suicida sacana: não me contento com simples autodestruição, quero ver tudo pelos ares, não deixar o mundo seguir depois da minha passagem.
Que de nada vale, e é preciso pinças pra alongá-la.
Tenho o corpo coberto pelas tentativas das pinças, porém, entretanto, todavia, te asseguro: não choro nem lamento, nem te permito assim fazer.
Desconfio do que sinto. Fechada. Caída de novo na areia.
Não quero sequer saber de você.
Na redoma do silêncio, amolo a lâmina da distância. Um vão maior do que nosso desejo de amar.
Quem disse que queremos nos amar?
Só por descuido, abro os olhos. Por descuido e ansiedade de imagens. Quando se fecham os olhos, as imagens não morrem, é claro, mas se colam umas às outras me confundindo as cores.
É sempre necessário distinguir as cores.
Entretanto, que digo diante da sua imagem, de repente debruçada sobre o cântaro, enchendo-o de água salgada e brilhante, água que dá passagem inquietante pro sol?
Você enche o cântaro.
Homem, não faz essas coisas, já lhe disse: não está certo um homem agir assim...
Você enche o cântaro e vai despejando devagarzinho a água de volta ao mar. A água de dentro do jarro, dourado, desgastado pelo mar. Tem duas asas o cântaro, duas asas mas você só pega em uma. E despeja a água de dentro pra fora. E enche-o na água de fora. Agora vem e me molha a barriga. Me molha as pernas. Minha boca cheia de uma sede menor.
O espaço some por completo.
Sonho que você está logo mais na esquina, me esperando todos os dias pra tomarmos café ou simplesmente ir ao cine. Então lhe digo: ponha menos açúcar, ou digo tão somente: prefiro os filmes mudos – quem sabe os guardiões de nossa verdadeira língua?
Agora: feche os olhos, nada mais importa.
Fale-me de tua gente, do amarelo de teu país. Funda meus telhados de concreto aos teus de barro ou de Eternit, quero saber com que delicadeza teus dedos e tua boca percorriam os corpos de tuas mulheres. Fale-me delas, das mulheres, eu falarei dos meus homens.
Perguntas são inúteis, entre nós só movimentos e lembranças cabem.
Gire comigo, fale do teu tempo de espera, falo do meu.
Sempre soube que tu virias, do norte ou do sul, de outras terras, das geleiras, até do inferno, sabe Deus. De bem dentro de mim, da fome que faz este mormaço parecer incêndio. Você viria, eu sempre soube. Ignorei os amores passadiços, as ocupações que garantem a sobrevivência. Fazia tudo rápido e malfeito e, quando nada conseguia, segurava a fraqueza do corpo, do cérebro, da alma sem alimento. Por isso fiquei assim: esqueleto doendo de madrugada, mas tenho absoluta certeza: você não vai se importar.
Imbecil que és. Imbecil que sou.
Todos os dias verei você sair do fogo do isqueiro, com um punhado de açúcar e disposto a cerrar as cortinas para que meus olhos não vejam o centro da tela. Mesmo quando ao meu lado não existir companhia alguma pra partilhar o cigarro aceso, você deve comigo estar. [...]

terça-feira, fevereiro 05, 2008

Talvez fosse você, eu conversava sobre as possibilidades ainda existentes de usar partes do meu nome, combinações outras, que não me exponha de todo mas não me retenha muito, então a voz reclamava, estava eu voltando pra casa, na rua escura, sem ninguém, voz sem corpo e sem contorno melódico claro, talvez fosse você em meu ombro, falando de tantos outros nomes, casamentos desfeitos, chuvas que não nos molharam bem, qualquer relação invisível assim, que de olhos abertos ninguém entende, capta, estabelece, talvez fosse mesmo você, eu dizia que só havia tentando duas vezes, estava envelhecendo e precisava acelerar, esta é apenas a segunda tentativa, o casamento é uma ilusão espiritual que cola demais, a voz rebatia, cola nada, eu devolvia, gente incompetente tem mania de jogar a culpa nas coisas e não em si, cola, claro que cola, ecoava em meu ouvido, a voz sem nitidez, talvez fosse mesmo você, sobrevoando o ar da rua, enquanto eu voltava dentro da escuridão e feliz, enfim, por ter uma casa, procurava ignorar, não ouvir tudo aquilo que era dor e era conselho, oriundos, talvez, agora percebo, bem que podia ser você.

Em Não se vai sozinho ao paraíso, primeiro romance que integra a trilogia místico-erótica de Állex Leilla — cujo centro são as micro-...