domingo, julho 27, 2008


Falava de uma água limpa,
que correria lenta pelo solo e acordaria a manhã.
De uma água feito cachoeira
mas mansa,
num deslizar quase estudado pelas pedras,
terra,
pés de gente,
patas de bichos.
Como uma canção antiga vai ficando na cabeça desde a infância,
ressonando.
Quando nem compreendemos ainda
a relação inapreensível entre as palavras e os sons.
Fica e some vez-em-quando,
fica e retorna e dói e alegra e novamente some.
Memória de zigue-zague.
Construção meramente gideana: o pântano das lembranças.
Outra: miséria de vida.
Diria, dizíamos, dir-se-ia: pouco importa esclarecer.
É vago e lento o que desejamos: existir dentro de uma língua.
Enternecer-se.
Por isso, voltar.
Voltar ao início, por certo.
Voltemos.
Falava daquela água que a tudo limpa, que acolhe,
que abandona ribanceiras à frente, que purifica.
Aquela água.
Aquela.
(In: São Franciscana)

quinta-feira, julho 17, 2008

[...] O pior de tudo é que não há cheiros e quase se pode sentir Deus. Eu quero andar e não sou movimento. Ágeis são os arbustos, são as nódoas, são as faltas de cheiros, meu corpo não.
Primeiro me dei conta disso – do corpo – que ruía a cada quarto de hora, depois percebi aterrorizado as formigas, rodeando-me como se faz com o alimento. Histérico, nos instantes iniciais ainda achei que reuniria forças onde quer que fosse pra quebrar a inércia, vencer.
Não consegui.
Tua mão veio viva afastando os insetos de mim. Limpou um resto mínimo de sangue, pôs rosas e perfume e me vestiu com um manto de cetim claro.
Ri, grato a ti por tanta generosidade, saiba que estarei sempre, e achei teu pranto extremamente belo caindo em meu rosto morto. Devia ser quente a tua dor e fazia a das outras pessoas indiferente, nula. A milímetros de mim, você arfava em desespero. Não te senti como antes, minha faculdade consistiu no verbo ver, segunda conjugação, transitivo direto. Não lembro mais...
Vi você me guardar no vão e a madeira comer minha liberdade.
Falo como corpo porque corpo preso fui depositado.
Os grãos de areia, as velas, os vermes. O regresso. Não seria exatamente areia, mas barro pútrido, enojante.
Imaginava que o alimento fosse vivo, que cada mastigar sofrido fosse uma alegria de transformação próxima. Mas, não, a dor de ser absorvido é total, é cruel e leva parte dos sentidos. Abomino-me em retalhos. Eu me odeio mordido, rasgado, mastigado, comido. Pernas de barata, pêlos, gosma, meus dentes!
Nenhum cheiro exala, nenhum formigamento. Meu pênis, minhas mãos. Eu não conhecia esses tipos de vermes, só aqueles que levam parte do joelho... lia sobre bichos que dão em água parada, matava muitos ratos quando tinha dez an.....h! Jesus! O cheiro morno da virilha pra sempre perdido... minha unha caindo vagarosa na madeira... minha boca, eu não tenho boca!
É preciso um cigarro, um café.
Um choque elétrico...
Ainda faltam as veias... Ali, falta parte do nariz e um resto de coxa... E essa posta de carne verde, aguada, donde fazia parte? O sangue endurecido. O sangue é um requinte, quem virá me sugar? Eu me contorço, não sei do tempo. Deve ser longo, mas eu não o sei. Incho. É o inconformismo? Eu não voltaria a comer se tivesse novamente boca, dentes, língua, mas ainda assim... quero meu corpo!
Tapa na cara.
Dentes rolando.
Baba.
Quero meu corpo.
Escuridão.
Por favor, me soltem, me deixem...
Um corte vertical no planeta. Que todos sangrem, que se fodam, que não reste migalhas de gente.
Não é possível... então sou isso?
Corro.
Carne moída.
Odeio. Odeio. Odeio.
Subirei no topo.
Picadinho.
Mal, mal, mal.
Formigas estranhas, estranhas.
Quero tudo no lugar de antes!
Misérias se multiplicam. Demônio, demônio...
Em toda parte: baratas.
São os bichos que mais odeio. Eu que comia vegetais! Eu, que não-andava-descalço-debaixo-do-sol-por-muito-tempo. Eu com minhas rugas.
Eclipsado.
De mal com Deus.
E com Jesus Cristo.
Eu corro.
Que se fodam, desgraçados! [...]
In: Henrique, Editora Domínio Públicco, 2001.

segunda-feira, julho 07, 2008


Uma coisa bonita de se ver é o olho do nada, às 4:00 da manhã.
Em geral, ele aponta que é véspera de tudo e de coisa alguma.
Por vezes, trata-se tão somente de estar centrado no jogo perverso das imagens: a escassez do olho do nada, com sua brancura violeta, nos trazendo em cheio para o chamado "qualquer coisa da vida".
É possível mesmo renascer ou trata-se apenas de uma frágil brincadeira entre as cores do novo dia e a velha vontade tão humana de "acontecer"?

Em Não se vai sozinho ao paraíso, primeiro romance que integra a trilogia místico-erótica de Állex Leilla — cujo centro são as micro-...