terça-feira, dezembro 30, 2008

Fonte da imagem:http://www.mongabay.com/images/gabon/600/gabon-18770.JPG

Que os bons caminhos se estendam ao teu encontro. Que o vento sopre sempre a teu favor. Que o sol brilhe cálido sobre teu rosto e as chuvas caiam suave sobre teus campos. E, até que de novo eu te veja, que o Senhor te conserve na palma de Sua mão.
Feliz 2009!
Muita paz, muita prosperidade e muita renovação!

terça-feira, dezembro 23, 2008

Fonte da Imagem: http://www.galeriaaberta.com/eduardo_patarrao/slides/Coral%20azul.jpg




Só porque achei no chão

a estrelinha azul que você perdeu

comecei a repensar no nosso amor.



Essas casas simples de cimento vermelho

levam nossa tristeza pra dentro do tamarindeiro.

As tardes inteiras vão passando calmas na rede,

enquanto mata adentro os grilos nos falam

do quanto a noite será extensa.



Só porque colei na palma da mão

a estrelinha azul que você esqueceu

nosso amor deixou de ser mero pensamento.






segunda-feira, dezembro 01, 2008


O piso da casa é gasto, não se percebe ruídos. A luz que chega é delicada, luz de mundo nublado, e bate diretamente nos quadros verde-sépia da parede.
O que uma noite sem sono dá?
O domingo não acha esperma algum no lençol. Dentro das malhas finas da manhã, meio perversa meio recomeço, o único cheiro é de mulher dissipada, afagando travesseiros. O corpo está só. Embaraçado, voltando à tona. Um suspiro e a mão abandona o sexo. Faz que tateia a própria pele, seu cheiro a um palmo do nariz. Sopra os pêlos entre os dedos, sempre se arranca muitos pêlos nesses movimentos circulares, solitários. Livra-se de palavras ditas no ontem, o quarto deserto, 72m², nenhum traço dele.
Mas há qualquer traço dele por ali, sim, que se seja precisa ao menos uma vez. Há no azul do firmamento parado, nuvens paradas, atravessando horas, cuspindo nas rédeas do tempo, algum homem que se mistura à manhã, à canção que não se sabe quantas vezes mais será repetida, aos membros arranhados, à flor que morre no chão da varanda, que rola pra debaixo do sofá por capricho do vento, o único vento forte que entrou pela janela desde às 2:00 da madrugada.
Aí lhe vem um verde vivo: a memória já entupida de heranças, de porfazeres. Quer apenas que tudo se extirpe, ficar sozinha como peixe dentro do vidro. Sozinha com a bebida cor de caramelo, a chuva que obriga o sol a ir embora, a aspirina, o espirrar agora mais constante, o cabelo que novamente acha de perder o tom.
É refazer sempre.
Qualquer um dos fios desse emaranhado de coisas e imagens contidas que se perca, trará de novo o homem que não se tem mas que se sabe o tempo inteiro lá fora, selando, perscrutando a solidão.
Ocorre que não se quer senti-lo.
Frases mortas dele em círculo, como se a sitiassem.
Sabe que num momento leviano como esse o corpo dele junto ao de outro cara, lado a lado, atravessam a cidade - Brasília, onde ele foi morar - ou quedam-se agarrados entre odores e travesseiros. Quem sabe se um arranca violento o tecido que cobre o peito do outro, quem sabe se a violência prossegue em beijos, mordidas beirando sangue, ou promessas apaixonadas, ou sinceras confissões.
Miséria de vida maldita. A essa hora, ele deve estar com outro homem.
Pensando nisso, masturba-se. Depois, angustia-se.
Perde a calma.
Quebra cascos de Coca-Cola na cozinha.
Amaldiçoa a si mesma, a cidade, a TV.
Aumenta o volume, gritando por cima da voz de Patti Smith, de Chrissie Hynde. Mulheres fortes como tu, ele dissera. Serão, será?
Cala-se.
Masturba-se mais uma vez. [...]

domingo, novembro 23, 2008

Enquanto não havia o medo, voávamos alto, talvez vôos do tamanho do nosso ego, talvez meros exercícios verbais. Entrávamos e saíamos de abrigos, achando-nos invencíveis, na pior das hipóteses, nossa melhor companhia pra solidão.
Consideremos o que fomos: bichos que ousam não ter medo do vazio, da solidão, da perda. Não ter medo é pensar grande, sabemos, mas é também pensar atropelado. Hoje há um fosso entre o corpo e alma. Chamamos precaução, receio, cautela, cuidado. Que nada! É o medo.
Medo de te perder subitamente. Teu cheiro, teus pêlos, teu umbigo, tuas coxas, teus braços, teu toque. Perder tuas palavras, tuas histórias repetidas, abruptas, engraçadas. Tua alma calma junto à minha. Tua cabeça viajando sem sair dos lençóis.
A vontade sem sentido de gritar no meio da rua: não me deixe! Tem cabimento? Não. Mas como mentir? O medo estrangula a garganta. Fazer o quê.

21 de novembro


Almoço no Saúde Brasil, um clássico???

domingo, novembro 16, 2008

Lista de presentes possíveis e outros nem tanto para 21 de novembro

1. Cd Greatest Hits, Morrissey (novo, de 2008)
2. Cd Só nós, Paula Toller
3. Cd "Pros que estão em casa", novo, de Toni Platão
4. Cd Rank, dos Smiths
5. Cd Epanymouns, do REM
6. "Escritos da Inglaterra", de Ana Cristina Cesar
7. Biografia de Caio Fernando Abreu: já recebido!
8. Livro de poesia de Ted Hughes (qualquer um)
9. Livro de Al Berto (qualquer um)
10. "Depois da Teoria", de Terry Eagleton: já prometido!
11. Cinzeiro grande, bonito
12. Ba-guá para porta de entrada preto, marrom ou dourado
13. Sais para banho
14. Plantas grandes ou pequenas, mas saudáveis
15. Óculos de sol do tipo tartarugas, marrom ou preto
16. Batedeira
17. Cafeteira
18. Uísque
19. Bolsa preta ou marrom
20. Xícaras
21. Copos bonitos
22. Toalhas de banho, vermelhas
23. Roupas de cama/casal, lilás, roxo ou violeta
24. Pijama
25. Lenços para cabelo
26. Tapetes vermelhos para banheiro

terça-feira, outubro 21, 2008

Diga-me: o que traz você aqui?


Ser feliz diante do teu claro par de olhos não é mais uma meta, mas a única forma de sobreviver. Estranhos. Teus olhos. Estranhos. Olhando tudo com desconfiança.

Me aconselha a morte? A derrota? O esquecer?
Diga-me: o que traz você aqui?

Não posso ver por ti as borboletas de setembro, não posso sentir por você o cheiro quase incêndio dos jasmins.

Te aviso apenas que esse lado que tomas é o pior lado da estrada.

Sinta comigo: há tanto atalhos, tantas formas de se buscar o sol, por que então insistes sempre em ir por onde queima, por onde ele rouba a vida do verde, onde ele sapeca tudo de um amarelo queimado, amarelo morto, infeliz?

sábado, outubro 11, 2008

Ao mesmo tempo que passa, permanece.
Subindo em bolhas.
Aglutinando, aproximando,
afastando-se.
No fundo, é a tela azul da mente,
sem novidades,
de um azul machucado e denso.
No foco, as mesmas imagens,
de ponta cabeça,
de lado,
de frente.
Viajam.
Como viajavam em minha xícara
os milhares de guarda-chuva coloridos
enquanto, agasalhada, tomava café
e te esperava.

sexta-feira, agosto 22, 2008

[...]
Fácil é pensar em falar com ele, não como se sofresse um súbito acesso de fuga e, confusa, estivesse dialogando com o que não há. Não isso de borboleta errante procurando pouso em flores baldias. Que isso, apesar de bonito, é torto e não ameniza dor nenhuma. Nada de fuga, reticências, abstrações. Se pudesse estar olhos nos olhos com ele, comentar qualquer bobagem — não da dor, da dor não, agora: não, por Deus! —, cercar-se de coisas leves, comentários sobre a primavera, sobre café expresso com creme, sobre a temperatura certa do vinho tinto, sobre cigarros, sobre as condições do tempo em Salvador. Algo meio folha de amendoeira ao vento: bela, leve, cheia de retrâncias avermelhadas. Que amigos, amigos verdadeiros, ela leu em algum lugar e ainda se lembra, precisam apenas de proximidade, não de conteúdo ou confissões, precisam é estalar a língua no ar, espairecer. Uma conversa meio apoio para o corpo, uma conversa um tanto pilastra, coluna grega pra escorar a dor. Escore esta hemorragia pra mim, meu querido. Faça em segredo uma simpatia pro corpo se endireitar de novo, pra dor ficar comportadinha. Não tão aguda. Boazinha, na vitrine, como dizia Baudelaire, re-dizia Ana C., re-diremos agora nós. Compreende?
Tão simples pedir ajuda a ele. Tão impossível obter.
Um demônio toca piano.
Ou seria clarineta?
Um demônio dança longe.
Ou seria dentro?
Enquanto tenta falar com ele, tropeça na fraqueza: tonteira e despreparo pra arrumar os acontecimentos. O canal da mente fecha. É verdade: a imagem dele some. Que desgraça. Desaparece aquela voz serena dele, aquela calmaria de lençóis de cetim que é estar aninhada nele. Miséria. Só pensa em chegar em casa imediatamente, tomar banho, vestir uma roupa limpa, necessariamente de algodão, e cair na cama.
Mas voltar pra casa... Como poderia?
Torna a ver o mundo escorregadio e cai.
Cai sem ouvir a resposta dele. Sem conseguir visualizar a mão cheia de pêlos dele. Estendida. Salvando-a. Cai e vai apagando. A mente soletrando the end, the end, como uma inimiga pirracenta, a mente projetando, mortalhas de seda vermelho-sangrento, pra lá, pra cá, o último orgasmo com ele, ontem, ali, aquele copo com conhaque num sábado chuvoso, antes de ele confessar que amava outro cara, antes de ele querer ir embora, por quê, meu Deus, por quê?, sua vida acabou, minha querida, já era, encare os fatos, sua vida è finita, entendeu?
Sì, sì, va bene, ho capito, non c’è male, arriverdeci.
Perseguição em língua estrangeira.
Talvez fosse isto: fechar os olhos, se entregar. Por que não?
Por mais que amedronte, a escuridão sempre promete um alívio pra dor. Ficar imóvel, desaparecer dentro dela, feito poeira. Besta quadrada é qualquer existência, já se sabe: viver não vale o esforço com que expiramos.
A vida.
Miudinha.
Pedregulha embaixo dos pés.
Incrível como os olhos se entregam fácil, acomodando-se à falta de luz.
O resto do corpo, porém, não.
Luta, força o retorno à claridade.
Rumina.
Resiste.
Se desprega da alma, tem vida própria, arrepio de corrente, tempestades.
O resto do corpo é presente sólido, se impondo. Enquanto a cabeça é longe, tão longe. Tanto tempo. Dias, meses, séculos atrás. Provavelmente, só os vermes aproveitarão tanta energia gasta entre um e outro, pois são os vermes que espreitam as guerras, de camarote, aguardando o desfecho.
É isto?
Porra nenhuma.
Vontade antiga impulsionando: vencer.
De onde, por que vem?
Não sabe.
Desimporta.
Reaprende.
A luz de uma vida inteira.
Quer ver a luz do sol. Não se entregar. Viver.
Desperta outra vez.
Anda cambaleando, depois consegue andar um pouco mais firme, lutando contra a tontura que nasce na cabeça e vai se espalhando pelo tronco até mordiscar os pés. Nos pés e mãos, agulhas trabalham a cada passo.
Ignora-as.
Esfrega os pulsos, abandona o terreno baldio para onde os dois homens a levaram, à força. Na subida, avista um viaduto. A memória é suficiente pra reconhecer onde está. Orienta-se pelo velho viaduto encravado no centro da cidade, acima de sua cabeça. Atravessa o estacionamento São Raimundo, embaixo dele. Esfrega de novo os pulsos marcados. Então, a abandonaram no centro, sem moto, sangrando, sem dinheiro, sem nada. Muito bem, muito bem. Um rapaz vai passando, perto da árvore velha que sombreia cheia de vida uma parte da calçada. Franze a testa ao vê-la:
— Precisa de ajuda, moça?
De calças jeans e boné verde-cana.
Vem correndo, assustado, ao encontro dela.
— O que aconteceu, dona?
Ela tenta calcular as horas enquanto se apóia no ombro dele.
— Você precisa de ajuda? — ele volta a perguntar, confuso.
Ela o encara. Ele torce as mãos.
Primeiro “moça”, depois, “dona”, e, por fim, “você”. Uma gradação masculina?
Sim, queridinho, toda a ajuda possível, como não?, veja, acabara de perceber: ia precisar matar dois homens logo, logo. O pensamento foi tão rápido que ela mal acreditou: does the body rule the mind or does the mind rule the body? Ligar mais tarde pro Príncipe da Ironia, pro Deus da Melancolia Infinita e perguntar: Stephen, querido, você já conseguiu uma resposta precisa?
Mas lembrar daquela música, naquele instante, é pender de novo no vácuo. Passaram-se tantos, tantos anos. Ela era adolescente e queria sair do País. Essa canção no café da manhã, essa canção na hora do almoço, essa canção antes de dormir. O corpo toma o leme ou a mente é quem dirige? Quer dizer, realmente importava saber? Gostava até mais quando ocorria o contrário, quando o coração vinha mais ágil e tomava o centro. Uma vida dirigida pela emoção, uma vida sessão da tarde, se pudesse escolher, como diria não?
O rapaz pergunta novamente se ela precisa de ajuda, se fora atropelada, se sentia alguma parte do corpo quebrada.
Ela balança a cabeça. Se não tivesse a garganta tão seca, diria que sim, fora atropelada, não: triturada, melhor: moída. É exatamente isto: acabaram de passar por cima de toda a sua existência, o moinho da vida, já cantava aquele sambista, o bonde do mal na rua, registrou aquele roqueiro, lembra?, triturou seus sonhos mesquinhos, reduziu as ilusões a pó. E agora, meu querido, ah, como ela precisava de socorro. Todos e qualquer um. Principalmente de um copo de água gelada. Água que soubesse cair límpida na garganta, sem arranhar ao descer pelo interior do corpo. Depois, um longo descanso entre as nuvens de algodão da infância. Aquelas que de segundo em segundo se transformam em novas formas, mexendo-se, derramadas, entre os espaços azuis do céu. E ainda: os revólveres mais velozes do mundo, gatilhos estridentes, canhões de última geração, e pólvora, muita pólvora pra explodir todos os pênis desconhecidos pelo ar. Navalhas pra arrancá-los dos corpos dos homens, leques e chumaços de algodão com álcool no nariz pra poder acompanhar a queima deles sem ter que sentir o cheiro podre infestando. O que mais quer neste instante: cortar fora todos os malditos pênis desconhecidos de todos os malditos homens desconhecidos do planeta. Fazer uma fogueira imensa com eles e dançar ao redor, como fazem os índios para pedir aos deuses que mandem chuva. Porém, ela, se pudesse, pediria aos berros ao deus que houvesse naquele instante — incompetente, de plantão, à escuta — para que mandasse reinar não a chuva, mas a impotência total, mandasse reinar o fracasso, mandasse imperar a esterilidade, mil defeitos incorrigíveis, grotescos, fatais, capazes de confundir a raça masculina, ameaçá-la, extinguí-la, assim como deveria ter sido desde o princípio, fosse agora por todos os séculos & séculos, amém.
Todavia, a garganta está mesmo complicada e uma única sentença cabe:
— Me ajude chegar à delegacia.
É tudo que pode dizer ao rapaz, apoiando-se nele apenas o necessário pra conseguir andar. Contato mínimo, antes que enlouquecesse de vez e esganasse o inocente — será que algum deles é inocente? —, tão desconhecido, tão solícito.
[...]


Trecho do capítulo 01 de Primavera nos ossos, obra selecionada pelo Edital de Cultura "Criação Literária", da Petrobras, 2007/2008, publicação prevista para dezembro de 2008.

domingo, agosto 10, 2008

Há uma voz pedindo silêncio na manhã azul em que muitos ganharam, muitos perderam.
Dizem os deuses: coisas são voláteis, coisas respiram,
então, havemos de lembrá-las, havemos de esquecê-las.
A temeridade do lamento afoga a manhã,
combatendo como numa guerra o silêncio solicitado.


***
Se você pretende ser
lilás,
etérea,
difusa,
suicida,
às 3 da manhã,
saiba,
antes que aquela porta se abra
às 3 da manhã
e espalhe entre as flores
a ajuda que sua voz jamais formulou
que todo caldo entorna devagarinho na estrada,
que tudo leva a curvas desconhecidas,
a rótulas misteriosas
que o que hoje nos impele à inação,
amanhã nos leva a dançar
pierrôs perdidos,
columbinas esgarçadas,
arlequins inquietos,
a perguntar, a responder,
como na canção italiana,
che cosa so?, che cosa sei?, che cosa sai?
Niente, è vero.
Ninguém sabe coisa alguma entre o céu e o mar.
Eco il nostro destino: parlare, parlare,
come la prima volta.

sábado, agosto 02, 2008

Mas não era possível terminar assim:
seda rasgada justamente onde a seda lilás ficaria,
não podia ser tão abismo e, por isso mesmo,
pontiagudo, pedregulho, arranhento.
Uma vida que se desliza
- marfim, âmbar, amarelo-pêssego -
quase nunca círculo, tampouco linha reta,
uma vida que naturalmente se inventa
- Bandeira, Cecília, Quintana -,
assim no aconchego do dentes
e das coisas derradeiramente precisadas, escolhidas.
Que terminasse de outra forma:
louça partida, cristal em mil pedacinhos, água escorrendo brusca e, lá na frente, ficando intransponível, pardacenta, suja.
Mas não dessa forma: seda esgarçando,
morre-não morre,
lupa aumentando os mil pontinhos do corte,
lupa multiplicando, expandindo.
Não, definitivamente não era possível terminar assim.

domingo, julho 27, 2008


Falava de uma água limpa,
que correria lenta pelo solo e acordaria a manhã.
De uma água feito cachoeira
mas mansa,
num deslizar quase estudado pelas pedras,
terra,
pés de gente,
patas de bichos.
Como uma canção antiga vai ficando na cabeça desde a infância,
ressonando.
Quando nem compreendemos ainda
a relação inapreensível entre as palavras e os sons.
Fica e some vez-em-quando,
fica e retorna e dói e alegra e novamente some.
Memória de zigue-zague.
Construção meramente gideana: o pântano das lembranças.
Outra: miséria de vida.
Diria, dizíamos, dir-se-ia: pouco importa esclarecer.
É vago e lento o que desejamos: existir dentro de uma língua.
Enternecer-se.
Por isso, voltar.
Voltar ao início, por certo.
Voltemos.
Falava daquela água que a tudo limpa, que acolhe,
que abandona ribanceiras à frente, que purifica.
Aquela água.
Aquela.
(In: São Franciscana)

quinta-feira, julho 17, 2008

[...] O pior de tudo é que não há cheiros e quase se pode sentir Deus. Eu quero andar e não sou movimento. Ágeis são os arbustos, são as nódoas, são as faltas de cheiros, meu corpo não.
Primeiro me dei conta disso – do corpo – que ruía a cada quarto de hora, depois percebi aterrorizado as formigas, rodeando-me como se faz com o alimento. Histérico, nos instantes iniciais ainda achei que reuniria forças onde quer que fosse pra quebrar a inércia, vencer.
Não consegui.
Tua mão veio viva afastando os insetos de mim. Limpou um resto mínimo de sangue, pôs rosas e perfume e me vestiu com um manto de cetim claro.
Ri, grato a ti por tanta generosidade, saiba que estarei sempre, e achei teu pranto extremamente belo caindo em meu rosto morto. Devia ser quente a tua dor e fazia a das outras pessoas indiferente, nula. A milímetros de mim, você arfava em desespero. Não te senti como antes, minha faculdade consistiu no verbo ver, segunda conjugação, transitivo direto. Não lembro mais...
Vi você me guardar no vão e a madeira comer minha liberdade.
Falo como corpo porque corpo preso fui depositado.
Os grãos de areia, as velas, os vermes. O regresso. Não seria exatamente areia, mas barro pútrido, enojante.
Imaginava que o alimento fosse vivo, que cada mastigar sofrido fosse uma alegria de transformação próxima. Mas, não, a dor de ser absorvido é total, é cruel e leva parte dos sentidos. Abomino-me em retalhos. Eu me odeio mordido, rasgado, mastigado, comido. Pernas de barata, pêlos, gosma, meus dentes!
Nenhum cheiro exala, nenhum formigamento. Meu pênis, minhas mãos. Eu não conhecia esses tipos de vermes, só aqueles que levam parte do joelho... lia sobre bichos que dão em água parada, matava muitos ratos quando tinha dez an.....h! Jesus! O cheiro morno da virilha pra sempre perdido... minha unha caindo vagarosa na madeira... minha boca, eu não tenho boca!
É preciso um cigarro, um café.
Um choque elétrico...
Ainda faltam as veias... Ali, falta parte do nariz e um resto de coxa... E essa posta de carne verde, aguada, donde fazia parte? O sangue endurecido. O sangue é um requinte, quem virá me sugar? Eu me contorço, não sei do tempo. Deve ser longo, mas eu não o sei. Incho. É o inconformismo? Eu não voltaria a comer se tivesse novamente boca, dentes, língua, mas ainda assim... quero meu corpo!
Tapa na cara.
Dentes rolando.
Baba.
Quero meu corpo.
Escuridão.
Por favor, me soltem, me deixem...
Um corte vertical no planeta. Que todos sangrem, que se fodam, que não reste migalhas de gente.
Não é possível... então sou isso?
Corro.
Carne moída.
Odeio. Odeio. Odeio.
Subirei no topo.
Picadinho.
Mal, mal, mal.
Formigas estranhas, estranhas.
Quero tudo no lugar de antes!
Misérias se multiplicam. Demônio, demônio...
Em toda parte: baratas.
São os bichos que mais odeio. Eu que comia vegetais! Eu, que não-andava-descalço-debaixo-do-sol-por-muito-tempo. Eu com minhas rugas.
Eclipsado.
De mal com Deus.
E com Jesus Cristo.
Eu corro.
Que se fodam, desgraçados! [...]
In: Henrique, Editora Domínio Públicco, 2001.

segunda-feira, julho 07, 2008


Uma coisa bonita de se ver é o olho do nada, às 4:00 da manhã.
Em geral, ele aponta que é véspera de tudo e de coisa alguma.
Por vezes, trata-se tão somente de estar centrado no jogo perverso das imagens: a escassez do olho do nada, com sua brancura violeta, nos trazendo em cheio para o chamado "qualquer coisa da vida".
É possível mesmo renascer ou trata-se apenas de uma frágil brincadeira entre as cores do novo dia e a velha vontade tão humana de "acontecer"?

sábado, maio 24, 2008

Pensa constantemente que o que lhe ocorre em doses diárias, no final dos tempos, transforma as coisas mais difíceis em aceitáveis. O mundo depende bestialmente da facilidade. Ou da facilitação. Devemos nos facilitar uns aos outros, mas principalmente a nós mesmos. Era o que pensava, às 22:30, tomando vinho barato, num bar da praça Marechal.
E conseguia?
Ela conseguia, às vezes sim, às vezes não. Por exemplo, pela manhã. O sol nascia ameno e ela saía pra passear. Ia à esplanada da Igreja receber o vento são-franciscano, olhar e fotografar as estátuas dos apóstolos, subir o Morro, visitar locas guiada pelos meninos que por ali ficavam, maltrapilhos, pedindo esmolas. Imaginava de onde viria aquele tanto de meninos de rua naquela cidadezinha. Não se lembrava que existia tanta pobreza na cidade onde nasceu.
Só conseguia se lembrar de dois bairros totalmente pobres na época em que viveu ali: a Nova Brasília, à beira do rio, cheia de casas de barro e gente que pescava, e o bairro das Casinhas, que era formado por casas populares tão pequenininhas, a esmola que o governo distribuíra às pessoas atingidas por uma enchente terrível num tempo em que ela, Maria Madalena, nem sequer estava por aqui.
Mas nada importava: a hora é de andar.
Andar, andar, essa é a sua música matutina. Ela andava muito pelas ruas de casas feias, perambulava entre as barracas da porta da Igreja, comprando bobagens: chaveiros de madeira, canetas com o nome da cidade, cinzeiros, barcos – ela era uma mulher que colecionava barcos –, burrinhos, carrancas em miniatura. Noutra manhã, ia à ponte, invejar os que tinham bicicleta e passavam olhando-a sem saber quem era. Mas quando o sol ia embora, a dor de cabeça começava, e a quase-ordem que lhe punha pra fora da cama, cheia de energia – devemos nos facilitar uns aos outros, mas principalmente a nós mesmos –, essa artimanha tão útil pra se começar o dia, perdia importância e não lhe valia mais. [...]
In: Obscuros, 1999.

domingo, maio 04, 2008

M.o.r.t.e.
IV

Só entre mim e a cauda de cavalo dele vão ficar:
fotografias, pirilampos, insetos no ar, pêlos no colchão,
algodão, curtos-circuitos, e a ausência de paz.
Você me contou naquele dia cinzento
que se chamava água-da-vida a cachaça que matou Pessoa.
Água-da-vida fez um rombo no fígado dele,
Água-da-vida o levou pra dentro da língua, de nós.
Movimentos, estrelas, barcos soltos pela casa,
os cheiros do teu corpo: você pintado, óleo sobre a tela,
tua boca dizendo: adoro cerejas.
Refazer o passado é morrer.
Os cadernos estão descendo na chuva,
aqui, arrisco ficar guardada,
por isso me molho lá fora, na nebulosidade azul-branca-borrada,
roxa, muita, tanta, quanta saudade de ti.
Sinto saudades de ti e é sempre como se desembaçasse vidros molhados de chuva.
Sempre, sempre, sempre: que palavra linda!, é tempo de retê-la na boca lentamente,
mastigar, conhecê-la, devolvê-la à língua.
Amanhã, não agora: nesse tempo úmido que se fecha sobre nossos corpos
e se abre sobre o mundo.
Amanhã, te peço, te falo no escuro,
amanhã aconteceremos, dentro da chuva.
Há de haver alguma chuva,
penso, quero, decido: amanhã.

quarta-feira, abril 16, 2008

[...] O dia está indo embora. Lembro que é aniversário de Samuel, um amigo de infância a quem não vejo há séculos. No escuro da sala, brindo com um resto de vinho esquecido por Breno na cozinha. Parabéns, parabéns, Samuel. Onde quer que você esteja: um punhado de estrelas e a eterna magia do verbo existir.
Bacana isso. De quem será?
Ele me ensinou a nadar. Merecia um bom vinho.
Uma fisgada na coxa.
Ouço cachorros ao longe.
Apago todas as luzes.
Quietinho na sala. Coleciono coisas tolas, pensamentos inúteis pra passar o tempo, assim:
1. Breno tem o sexo um tanto azulado... (Absurdo, ninguém o tem);
2. Breno beija como quem põe na língua do outro pedacinhos de folhas mortas de goiabeira... (De onde tirei esta estupidez?);
3. Estar com ele é perceber que de repente tudo em volta já era, já passou. (Isso é meio verdade, meio invenção);
4. O amor recomeça quando se acorda com substâncias alheias beirando o nariz. (Realmente? E que sentido tem?).
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Penso nisto todo o tempo: ele saiu, sumiu, não está. Com fome, de olhos mortos na claridade que vem, devagarinho, superando a escuridão.
As casas fechadas lá fora, sem frestas de sol. Os casacos nos corpos, esquentando o úmido, o gelo, o castigo do ar.
Penso, penso, penso. Errando a narina, rompendo nervos, gritando puta que pariu pro sangue que teima em sair.
E não sai muito, sai em gotas, qualquer mínimo de sangue me espanta, porque não quero, não posso perdê-lo, sempre acho que posso estar com AIDS e não saber.
E Breno, que dirá?
Somos tão gêmeos, ele pensa como eu, eu sei, eu sei, espere... Em que eu estava pensando?
Não, não somos gêmeos, somos diferentes pra cacete.
Penso, penso, penso.
Estranho a língua usada lá fora tanto pro amor quanto pras conversas banais. Pros livros, pras revistas, pro jornal que sempre informa as condições do tempo e do trânsito e nada sobre o Brasil.
Estranho a língua que se entende e se fala e eu já até domino, mas odeio, de repente odeio todas as línguas que não sejam o bom e velho português. Sometimes, até ele/ela. Sim, sim.
Adoro esta palavra: sometimes, oh, meu Deus, que eternidade!, bem que podia ser uma palavra latina. Por que não? Sometimes, eu sou gente, sometimes, um poço de inutilidades cristãs, sometimes: a primavera, sometimes: a dor maldita dor.
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Não tem a menor importância, vive-se de migalhas, quem se importa?
Eu sou metal, raio-relâmpago-e-trovão. O que é isso? Ah, é a Legião.
Miséria, as pessoas me exasperam com essa mania de formularem antes o que só a mim caberia conceber. [...]
In: Breno & Ariano

segunda-feira, março 17, 2008

Estamos aqui por acaso
e somos aranhas.
Gritar é uma forma de vida,
não gritar é outra.
Escolhas nenhumas
ou
escolhas algumas.
É possível sobreviver?
***
Estar de algum modo em casa e não estar.
Esta é uma luz rotineira em nossos espíritos. Evidentemente: não todos os espíritos, os mais afinados talvez.
Há uma pesquisa ainda a ser feita acerca do movimento quase imperceptível dos corpos quando fora do espaço concreto, com suas circunferências e ecos presos na gargantas a se perguntar por que somos seres humanos, aonde vamos no escuro, enquanto humanos, por quê/para quê.
A luz do dia é morna e esgota, em geral as perguntas menos carne.
É defeito da antena apresentar falas na transmissão logo pela manhã?
Ou é qualidade da antena calar o que a noite não escondeu?

domingo, fevereiro 24, 2008



[...]
Que mais querem nossos olhos? Nossos olhos querem e isto sempre quer dizer: mais.
O tempo marinho nas dobras, nos arranhões, na tinta.
Fomos crianças em cada tempo. Você trepou em árvores, usou estilingue.

Tempo bem velho e descorado: você me conta.
Infância: água sanitária.
Em minha terra não se fala badoque, mas estilingue.
Eu adorava vestir minhas bonecas com calcinhas e meias vermelhas. Pintá-las de esmaltes, borrá-las de batom e tinta guache. As caras de plástico pra sempre arruinadas.
Minha mãe brigava: nunca mais eu ia ganhar nada no natal.
Os natais matam a infância.
Me lembro agora pra no instante seguinte esquecer: o quintal da casa dos meus pais era cheio de varais e, de noite, invariavelmente, eu sonhava que eram fios de postes que me atrapalhavam os vôos quando através do pedaço de céu do quintal eu tentava fugir.
Pedaços de céu, oh, não, meu pai & minha mãe, minha professora & meus irmãos, pedaços de céu me maltratavam, mas, quando menina, jamais poderia saber: são as piores prisões.
Viro o olho pro teu lado esquerdo: o navio já se foi. Salvador o escondeu. O sol idem, mas já era fraco, pra que queremos sol se estamos tão abandonados?
Meu corpo volta a sentir sede do teu.
Eu amo teu corpo. Deixe que te diga de uma vez por todas: sou terrivelmente indefesa diante de pêlos.
Dos teus pêlos. Dos pêlos de qualquer homem.
Te revelo a grande dor da minha vida: estou cheia de celulite e estrias, estou envelhecendo. Mas você, mesmo assim, ainda me chamará de menina.
Não é agudo isso?
Eu não quero ser menina, desde cedo, evito ser.
É com passos de mulher que percorro o mundo. Quisera, nas pegadas, formar uma erosão ou larva de vulcão profunda que nos liquidasse – a mim, a ti, a ele – de vez.
Eu sou uma suicida sacana: não me contento com simples autodestruição, quero ver tudo pelos ares, não deixar o mundo seguir depois da minha passagem.
Que de nada vale, e é preciso pinças pra alongá-la.
Tenho o corpo coberto pelas tentativas das pinças, porém, entretanto, todavia, te asseguro: não choro nem lamento, nem te permito assim fazer.
Desconfio do que sinto. Fechada. Caída de novo na areia.
Não quero sequer saber de você.
Na redoma do silêncio, amolo a lâmina da distância. Um vão maior do que nosso desejo de amar.
Quem disse que queremos nos amar?
Só por descuido, abro os olhos. Por descuido e ansiedade de imagens. Quando se fecham os olhos, as imagens não morrem, é claro, mas se colam umas às outras me confundindo as cores.
É sempre necessário distinguir as cores.
Entretanto, que digo diante da sua imagem, de repente debruçada sobre o cântaro, enchendo-o de água salgada e brilhante, água que dá passagem inquietante pro sol?
Você enche o cântaro.
Homem, não faz essas coisas, já lhe disse: não está certo um homem agir assim...
Você enche o cântaro e vai despejando devagarzinho a água de volta ao mar. A água de dentro do jarro, dourado, desgastado pelo mar. Tem duas asas o cântaro, duas asas mas você só pega em uma. E despeja a água de dentro pra fora. E enche-o na água de fora. Agora vem e me molha a barriga. Me molha as pernas. Minha boca cheia de uma sede menor.
O espaço some por completo.
Sonho que você está logo mais na esquina, me esperando todos os dias pra tomarmos café ou simplesmente ir ao cine. Então lhe digo: ponha menos açúcar, ou digo tão somente: prefiro os filmes mudos – quem sabe os guardiões de nossa verdadeira língua?
Agora: feche os olhos, nada mais importa.
Fale-me de tua gente, do amarelo de teu país. Funda meus telhados de concreto aos teus de barro ou de Eternit, quero saber com que delicadeza teus dedos e tua boca percorriam os corpos de tuas mulheres. Fale-me delas, das mulheres, eu falarei dos meus homens.
Perguntas são inúteis, entre nós só movimentos e lembranças cabem.
Gire comigo, fale do teu tempo de espera, falo do meu.
Sempre soube que tu virias, do norte ou do sul, de outras terras, das geleiras, até do inferno, sabe Deus. De bem dentro de mim, da fome que faz este mormaço parecer incêndio. Você viria, eu sempre soube. Ignorei os amores passadiços, as ocupações que garantem a sobrevivência. Fazia tudo rápido e malfeito e, quando nada conseguia, segurava a fraqueza do corpo, do cérebro, da alma sem alimento. Por isso fiquei assim: esqueleto doendo de madrugada, mas tenho absoluta certeza: você não vai se importar.
Imbecil que és. Imbecil que sou.
Todos os dias verei você sair do fogo do isqueiro, com um punhado de açúcar e disposto a cerrar as cortinas para que meus olhos não vejam o centro da tela. Mesmo quando ao meu lado não existir companhia alguma pra partilhar o cigarro aceso, você deve comigo estar. [...]

terça-feira, fevereiro 05, 2008

Talvez fosse você, eu conversava sobre as possibilidades ainda existentes de usar partes do meu nome, combinações outras, que não me exponha de todo mas não me retenha muito, então a voz reclamava, estava eu voltando pra casa, na rua escura, sem ninguém, voz sem corpo e sem contorno melódico claro, talvez fosse você em meu ombro, falando de tantos outros nomes, casamentos desfeitos, chuvas que não nos molharam bem, qualquer relação invisível assim, que de olhos abertos ninguém entende, capta, estabelece, talvez fosse mesmo você, eu dizia que só havia tentando duas vezes, estava envelhecendo e precisava acelerar, esta é apenas a segunda tentativa, o casamento é uma ilusão espiritual que cola demais, a voz rebatia, cola nada, eu devolvia, gente incompetente tem mania de jogar a culpa nas coisas e não em si, cola, claro que cola, ecoava em meu ouvido, a voz sem nitidez, talvez fosse mesmo você, sobrevoando o ar da rua, enquanto eu voltava dentro da escuridão e feliz, enfim, por ter uma casa, procurava ignorar, não ouvir tudo aquilo que era dor e era conselho, oriundos, talvez, agora percebo, bem que podia ser você.

sábado, janeiro 05, 2008



Nascer não é muito, às vezes você fecha o livro e a paisagem se espraia. Outras vezes, é preciso abrir o livro a cada manhã.

Em Não se vai sozinho ao paraíso, primeiro romance que integra a trilogia místico-erótica de Állex Leilla — cujo centro são as micro-...