sábado, julho 14, 2007

[...] Deixa a depressão lá. Quietinha. Esperando do outro lado da pista. Não quer se perder no trânsito por desagulhas do amor.
Que o mundo se roesse em lágrimas, se explodisse, se esturricasse longe dela. Não se importaria. Queria apenas ficar quieta. Nada pra pensar, nada pra fazer.
Com as mãos pode brincar de coelhinho: dois dedos erguidos, o indicador e o anular, e o resto dos dedos em forma de nó, juntos. Fazendo movimentos na penumbra da parede. Com a outra mão, faz a boca de um lobo, alongando os dedos e os curvando como se fosse desenhar um “C” com eles. Realmente, parece um lobo perseguindo o coelho.
Ela ri: isso aprendeu com Wim Wenders... Asas do desejo ou Tão longe, tão perto?
Levanta-se e põe uma música. A música ainda é tudo de leve e verdadeiro num mundo cretino, caduco. Look at me/ who am I supposed to be?/ look at me/ oh, my love...
Sim, amor da minha vida, o cansaço estranho outra vez.
Foi na cozinha esquentar a comida. Provou o suco de manga.
Um bilhete da mãe deixado na portaria dizia que a amava. Minha-filha-você-vai-superar-essa-desgraça-eu-sei-sempre-acreditei-na-sua-força.
Um bilhete com um terço ao lado. Reze, a mãe pedia, procure ter confiança em Deus.
Em Deus, ela repetiu, irônica, masculino e cheio de esperma, tenho que ter confiança em Deus?
Pois sim.
A inocência dos ventres férteis. A dança torta nos ladrilhos bem esfregados da cozinha.
Ela não acredita.
Está muito, muito irritada neste instante.
Abre a tampa da lixeira, joga o terço lá dentro: God is a concept, and that’s reality.
Porém, fraqueja.
Os terços, as mães, coitados, que culpa têm?
Dá de se lembrar, na hora errada e tardiamente, como é de praxe, que Marcel adora terços. Às vezes, passa semanas desfilando com eles no pescoço, ora de madeira, ora de prata, de ouro, de contas. Em vez de jogar este fora, portanto, devia dá-lo de presente pra ele. Ia pôr a mão no lixo e trazê-lo de volta, lavar com sabão e passar álcool?
Indecisão cretina.
Pego-não-pego-o-terço-de-volta-pra-dar-a-Marcel-de-presente?
Deu com os ombros e fechou a lixeira.
Deu com os ombros e abriu a lixeira.
Tirou o terço, lavou.
Nó no peito: a mãe fizera com a melhor das intenções. Pobrezinha. As mães. A fé. O lado bom da vida brilhando, cintilando. Quase sentiu a mão dele, o abraço forte que só ele tem, puxando-a, inteira, pra si. A possibilidade de uma trégua no escuro: venha, feche os olhos e sinta como é calmo, como é intenso, como é profundo e silencioso viver.
Onde? Como? Oh, não. Uma tontura acompanhada de leveza, como nos primeiros orgasmos juvenis. Uma tontura boa e a cabeça se abre como a comportar todos os objetos e barulhos e cores de uma só vez.
De novo, a vontade absurda de recomeçar, de entender.
Ok, o que estava feito, feito estava. Paciência. Bastava nada dizer a mãe nem a ele. Pronto. Passou álcool no terço, embrulhou num papel fininho vermelho-seda, de sabe lá que presente ganhara, quando e de quem. Um papel fininho que estava debaixo do baú de bijuterias. Perfeito. Marcel ia adorar. É verdade que ninguém precisa saber os detalhes mórbidos que antecedem as delicadezas da vida, certo? Basta o silêncio, uma frase antiga (lembrei de você) e todos ficam felizes. A dor ainda não passara de todo. Mas ela toma banho assim mesmo e sai pra encontrá-lo. [...]

2 comentários:

  1. Anônimo11:50 AM

    Buenas.
    Állex, fui teu colega na Malagueta de junho.
    Gostei bastante do teu conto. =)
    Do teu blogue também.
    Enfim, foi um prazer.
    Grande abraço do Luís.

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  2. Anônimo10:47 AM

    olá! gostei imenso do teu conto tá simplesmente fabuloso e o teu blog um encanto. te convido a dar uma olhada no meu k é feito com poemas de minha autoria e com algumas fotos minhas tmb.
    http://paixoeseencantos.blogs.sapo.pt
    bjo
    Carla Granja

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