quarta-feira, dezembro 27, 2006

Pedaços

Ele havia mencionado que "o tempo fechou" em sua casa, depois falaria sobre isso. Não falou porra nenhuma e simplesmente sumiu. Cinco dias sem notícia.

Ela ficou preocupada. Escreveu perguntando se estava tudo bem por lá. "Por aqui, o tempo fechou também", ela brincou no email, mas em termos de clima, "está chovendo desde domingo". E acrescentou, de puro charme: "Mas é normal, já reparei que todo ano, onde quer que eu esteja, sempre chove nos dias 21 e 22 de novembro".

Isso era verdade, não charme. Não pergunte porquê nem diga que é coincidência.
Sempre chove no aniversário de André Gide, e um dia antes dele.
Isto porque Gide abre Sagitário, enquanto ela encerra Escorpião.

Sempre lhe acontece também: uma crise de coluna que, inexplicavelmente, termina em vômito. Também não pergunte porquê. Vai que ela está ainda ligada à Terra - que coisa lenta, não? - e precisa de purificação.

Já está tão acostumada com a dor de coluna dia 21 de novembro que cansou de comentá-la. Aliás, nem comentava mais da chuva. De repente, comentou com ele por distração.

Deitou achando que podia haver uma mudança, mudança tão significativa que a transformaria naquelas pessoas elegantes que jamais reclamam nem contam seus problemas pros outros, suportam tudo com um sorriso nos lábios.

Acordou e percebeu: nunca ocorre a mudança. As pessoas elegantes continuam a povoar a mente, distantes, acenando, do outro lado da pista.

O dia todo apenas aquilo: nenhuma notícia dele, a chuva e a dor de coluna.
Tomou um cataflan.
Depois vomitou.
No fim do dia a dor passava, assim como o mal-estar e a chuva.

Mandou outro email. Nenhuma resposta.

Dormiu e sonhou com uma coisa engraçada: ele, com aquela sua mania de listas, propôs uma lista das 10 coisas que mais a afastavam de seu cantor preferido e as 10 que mais a aproximvam dele. No sonho, ela não levava a sério, dava gargalhadas, fazia a lista e achava tudo absurdo.

Acredita que as coisas vão ficando na cabeça acumuladas e depois viram sonhos por ordem de entrada.
O mais estranho é que na lista das 10 coisas que a afastavam Dele estava:
a) Ele não gosta de sexo;
b) Ele é excessivamente europeu;
c) Ele dá declarações irresponsáveis, às vezes.

Na lista das coisas que a aproximavam, estavam:
a) Ele não gosta de sexo;
b) Ele é excessivamente europeu;
c) Ele dá declarações irresponsáveis, às vezes.

Achou graça: então, tudo que aproximava Dele também a afastava?

Pensou em gravar um cd com suas músicas preferidas para um dia de chuva. Ele iria aprovar a idéia. Mas, olhando pela janela, veio o envelhecimento: parou de chover. A dor de coluna voltava. E não havia um email dele na caixa.

terça-feira, dezembro 19, 2006

Porque brilha


Toda vez que a porra bate em seu estômago, ele não agüenta. Tira os olhos da vida porque em nada há de caber com esse corpo e essa dor. Enjoa, sua dor é só um enjôo crescendo e tomando conta da boca. Parece sem sentido que se trabalhe tanto apenas pra se conseguir isto: minúsculos comprimidos. Cápsulas de cores tão vivas. Joga toda sua energia toda atrás disto, em torno disto, buscando isto. Machucado com vodca. Vinho tinto. Conhaque. Mas bem que ele prefere com uísque. Sim, o que mais gosta é com uísque. Dois, três. Esprimidinhos no fundo do copo. Mudando a cor da bebida e dos olhos. De todo e qualquer objeto que atravessar o campo dos olhos. Na hora é tão bom. Tudo é excessivamente brilhante. Vê um cara de terno escuro com um guarda-chuva laranja. O cara brilha como se fosse de inox polido. Prata. Lataria banhada de sol. Sabe-se lá mais o quê. Mas, não, espere: o guarda-chuva ficou vermelho. E dói nos olhos. Gostoso ver como o vermelho brilha. A vida não podia ser apenas um vermelho que brilha? Todavia, já está virando roxo. Por quê? Miséria. Perde-se tão facilmente aquilo que se conquista a ferro e fogo. Tudo bem, tudo bem. Não importa. Agora: azul-turquesa. Hein? Ah, verde-exército. Rosa-chiclete. Porra, de repente fica preto e perde todo o contraste com o terno escuro que o cara usava: marrom de óleo diesel. Foda-se. Quem vai se matar por causa de um guarda-chuva? Quem, cara pálida? Segue andando, pouco importa, senta na Praça do Medo, embaixo da estátua de pedra em homenagem ao livro. Ao ato de ler. Quer parar de ver bolhinhas pipocando no horizonte. Não pára. Se lembra que devia ligar pra alguém. Um amigo/amiga. Silvinho? Cris? Violeta? Zeca? Quem? Podia ligar pra Helena, mas não: Helena vai se queixar que Fernanda ainda não chegou de viagem, que isso a deixa muito preocupada, e patati-patatá. Mulheres sapatas. Bah! Que saco. O enjôo de novo. Grita que tem tanta dor dentro de si que quer explodir toda a cidade. Vai vomitar, não vomita. Um travesti pergunta se ele quer trepar. Dá o braço a ele/ela. E vão caminhando. Pra onde? Não sabe? Pro seu apartamento, ele diz, ou pro meu. Me dá um cigarro. Você tomou bola, gatinho? Porra de gatinho, me chame pelo meu nome. Mão suada presa na sua. Riso alto. Você vai ficar de quatro pra mim, vai? Até de oito, meu amor. Tô ficando enjoado de novo. Por que, benzinho, por minha causa? Segura a mão do outro, mais forte. Não, por você não, você é jóia. Passa o braço na cintura do travesti. Aperta: não me deixe cair, eu estou tonto. Toda vez que essa porra bate no seu estômago, ele não agüenta. Segura a bolsa do travesti, enquanto o vê abrir a porta de entrada do prédio. Um gato mia, imitam-no, subindo as escadas de dois em dois degraus. Ele vai atrás do outro e lhe dá uns beliscões. Parece ser bonita aquela bunda na sua frente. Mas, não, caralho, vai vomitar, agora, não!, se segura. Não vomita. Começa a passar lentamente. Eles se beijam na boca quando entram no apartamento. Está ficando meio vidro perdido no escuro. Os brincos do outro. Balançando. A única luz vem do letreiro do bar lá de fora. Quer beber alguma coisa?, o travesti pergunta de mão cravada no pau. Quero. Uísque, tem? Dos bem baratos, gatinho, é só o que eu posso comprar. Faz mal não, serve. O travesti se afasta pra buscar a bebida. Bruno tira outro comprimido e põe na boca. Mais outro. Você toma tanta bola assim, gatinho? Vê se tira logo essa roupa cheia de rendinhas, tá me irritando o peito, ele reclama. O outro ri, vai tirar já-já. Gatinho, gatinho, mania mais besta... Fica de costas. Pisca os olhos. O cara de paletó marrom de óleo diesel de novo. Está molhado de chuva. Começa a chover horrores na sala do travesti. Casa com goteiras. Que nada, o outro diz, não tem chuva alguma, venha cá, benzinho, vem. O paletó ficando cinzento, prateado, dourado, bronze. Ele adora tudo que brilha. Mordem-se no pescoço. Toda vez esse revirar no seu estômago, enquanto na cabeça ele ouve blim, blom, blim, blom. Tem sinos na sua casa, cara? Tem não, meu amor. O travesti tira toda a roupa e cai no sofá. Bruno tira o membro pra fora, desce as calças até os joelhos e vai naquela direção. Mirando o meio das pernas do outro. A bunda do outro realmente não é nada mal vista assim. O cara aparece novamente, está sem o guarda-chuva, Bruno não consegue entender. O paletó tem remendos nos punhos, isso é novo, nunca se reparou antes. Mas não, não pára, brilhe, brilhe forte, assim, até o final. Agora é mais que vidro perdido na escuridão, é meio fosforescente também. Ele é alucinado por coisas que brilham. Mesmo que essa porra continue fazendo peripécias no estômago, a sensação do amor, de repente, a encobre. Bruno olha os braços do outro apoiados no sofá, sustentando o corpo, as pernas se dobrando abertas, quase de quatro e dizendo sacana “só fico assim pra você, amor”, ao que ele responde: yeah, eu sei, eu sei.

quinta-feira, dezembro 14, 2006

fonema não fode.
sua lavra nunca traduzirá
a manhã azul que se projeta
da buça dela.
sua lavra nunca traduzirá
o cheiro-sujo que a pica aspira,
mela gengivas
o pau procura palavra,
mas palavra nunca traduzirá
a buça aberta.
(João Filho)

Qual foi a natureza das coisas que amei?

Está muito, muito quente. Ainda não é verão, mas a cidade ferve e é repleta de urgências como se vivesse em verão pleno.

Quem sabe quando deixaremos de procurar com ânsias sentir a proporção inteira daquilo que desejamos? Quem sabe se, ao termos o que desejamos, apaixonadissimamente, perderemos o hábito/gana/angústia da posse?

Talvez leve, em harmonia, como a assimilação de contéudo & forma, ficando menos longe e menos dor, ficando sempre pele e sempre viço.

Conseguiremos?

A manhã está doce de tão serena. As preocupações de ontem desaparecem. Efeito da indecisão do tempo. O céu está nublado e há rumores de chuva, mas o sol persiste entre nuvens com sua luz cristalina.

Os olhos recaem a cada terço de hora nos flamboyants vermelhíssimos do pátio do Colégio 02 de Julho.

Sentir a natureza das coisas que amamos. Constitui uma linguagem, percebe? Isto é, nós dois, eu te amo e jamais brigamos. É puro pensamento, reles manhã.

quarta-feira, dezembro 13, 2006

Mais...


UIVO

Já não escuto o que é agudo ou grave,
Mesmo as aves são mero vôo obscuro.
Ouço apenas os mudos,
estes lobos de olhares ocos
a percorrer bosques de fome,
onde tateio uivos.

(poema de Marcus Vinícius Rodrigues, In: Tanta Poesia)

mais um pouco de Tanta Poesia
















Naftalina

Pouca pouca roupa, pouco pouco a te cobrir/ louco louco sobre mim/ coxas, línguas, passo, passas/ boca a boca, / ninguém a nos adivinhar, ninguém por nos descobrir/ o tempo todo recolhidos,/ jornais a falar, a falar por prazer/o massacre é a indefinição, o massacre é a desintegração/violentamente você saindo de dentro/ de lá do abismo mais escuro/onde não se ouve, não se julga, não se mede/ só mata-se, mata-se, mata-se/sem sol, sem frio: intactamente sobre o mármore/ nem sonho nem jardim: inescrupulamente guardados/ vedados, próximos às traças, próximos às aranhas/ mas você gosta de cupins e você sabe evitar o murmúrio/tão dentro de mim não há barulhos/ nem o ir e vir cansado dos carros diante dos prédios/ não há tua palidez, tua brochura/ tua invalidez, teus cabelos caindo brancos/ há o perfume da coisa abarrotada, da coisa apodrecida, encarcerada/ da coisa transtornada, paranóica, xilocainizada/ revertendo quadros, espera incansável/ de ser novamente aberta, novamente soprada/ de ser outra vez arejada por você. (Állex Leilla)

terça-feira, dezembro 12, 2006

Tanta Poesia


Dia 07/12/2006, no café Goethe, do ICBA, foi
lançada a Antologia Tanta Poesia, da qual fazem
parte 07 poetas, dentre eles, io!


Poeminha retirado da antologia:


Adolescência
I

(Para Jairo Castro de Andrade)


Pássaro distante, jamais nosso,
é um vôo no deserto, no muito pouco
que escapou de ti ontem.
Nunca mais vou olhar qualquer inocência da janela,
nem o sorriso velho, que nem cristal mal reluzido,
pode acordar o que antes ardia por querer.
O nosso estar cansado, o nosso não sem sentido
foi o que mais cresceu. E cresceu tanto
que as raízes derrubaram
a doce casa de portas amarronzadas.
Eu tive que me esconder
nos cacos, na desordem
enquanto você levantava vôo.
Você hoje não pode mais saber
se houve desejo pelo teu pouso,
se eu, aliviada, sorri,
se eu, desesperada, ergui
pedra por pedra, caco por caco,
pra sentir na ponta dos dedos
onde é que o fim fere mais.
Eu te disse que tudo é passado,
mas foi outra forma de mentira,
pois dores não têm ontem, hoje, amanhãs,
elas ficam fixas,
como as cores daquela época,
entre a pele e o cérebro.

quinta-feira, setembro 21, 2006

A tua pergunta


Se gosto do teu corpo, se também me sinto enlaçada, atraída, sedenta, se também enlouqueço/desconcerto/vidro/vibro/ardo/quero/morro de tesão pelo teu corpo. Uma hora do dia em que, encostando corpo com corpo, um sente o choque do cheiro, da pele, dos pêlos, do gosto do outro, o choque, aquilo, sim, que se traduz em rigidez num, umidade noutro. Se também me satifaço vez-em-quando sozinha pensando em teu corpo, tardes rápidas, intervalos que logo serão compensados. Se fico de olhar fixo, até sem graça de tanto contemplar. Por debaixo da roupa, teu corpo. Se acordo pensando em morder, lamber, mastigar, engolir teu corpo, se durmo querendo tudo outra vez. A cada olhada rápida em que se descobre um pedaço de pele suada, limpa. De pele salgada, dormida. Morna. Avermelhada. A cada momento em que o prazer ou a promessa dele retorna. Se pra mim também é sempre imperativo o desejo pelo teu corpo. Se é intenso e, logo mais, satisfeito-insatisfeito. Como um banquete que se devora e, ao contrário de Sócrates-Platão, continua-se a desejar com muita/inesgotável/desgraçada/tanta fome. Ad infinitum. Teu corpo. De azul intenso-profundo. O mais adorado de todos. Na cama. Na chuva. Na madrugada. Engraçada a tua pergunta. Muito engraçada.

domingo, setembro 17, 2006

Para Enzo Joazeiro Gomes


O menino quer um burrinho para passear.
Um burrinho manso,
que não corra nem pule,
mas que saiba conversar.

O menino quer um burrinho
que saiba dizer
o nome dos rios,
das montanhas, das flores,
— de tudo o que aparecer.

O menino quer um burrinho
que saiba inventar histórias bonitas
com pessoas e bichos
e com barquinhos no mar.

E os dois sairão pelo mundo
que é como um jardim
apenas mais largo
e talvez mais comprido
e que não tenha fim.

(Quem souber de um burrinho desses,
pode escreverpara a Ruas das Casas,
Número das Portas,
ao Menino Azul que não sabe ler.)

Cecília Meireles: O menino azul

terça-feira, setembro 05, 2006

Diadorim


Diadorim é um sebo de livros, cds, vinis e revistas que eu e o João Filho abrimos em Salvador.

Funciona para compra, venda e troca.

Endereço: Rua Forte de São Pedro, 157, Galeria Plaza, Loja 16, telefone 3329 5543. Email: diadorimlivros@gmail.com

sexta-feira, julho 07, 2006



Devemos isso aos céus - construir e não destruir? Hoje não queria saber de nada, a pequenez. My father Caio chamava "o ciclo seco". Seu olhar no fim do túnel. vez-em-quando vejo tão bem. Como naquela canção de Scandurra: você nas minhas mãos, eu juto que não tenho medo. A semana não começou bem? Está quase acabando e, olhe, que coisa curiosa: mesmo dentro da felicidade ainda há alguma coisa que de longe espezinha. Um banho de mar, precisamos de um banho de mar. As pessoas na rua, as tarefas diárias. Malditos burgueses que inventaram o trabalho. Entra um vento gelado de fim de tarde quando ainda é manhã, daquele vento que venta quando estamos trepando. Alguém chora alto na vizinhança. Chora e grita: não, não, não. Uma criança apanhando? Vamos derrapar outra vez na violência invisível que cerca nessa hora todas as manhãs. Uma criança chora na manhã: não, não e não. Pede, implora. As crianças só precisam de água limpa e respeito, disse aquele polonês. Todas as manhãs de nossas vidas. É um nome de um filme. Ficarão marcadas pela sombra. Queremos apenas abandono e silêncio quando crescemos. Água limpa e respeito também vão bem. Que Deus proteja também tua infância, amor da minha vida. Sim, eu sei. Amém.


Devemos isso aos céus - construir e não destruir? Hoje não queria saber de nada, a pequenez. My father Caio chamava "o ciclo seco". Seu olhar no fim do túnel. vez-em-quando vejo tão bem. Como naquela canção de Scandurra: você nas minhas mãos, eu juto que não tenho medo. A semana não começou bem? Está quase acabando e, olhe, que coisa curiosa: mesmo dentro da felicidade ainda há alguma coisa que de longe espezinha. Um banho de mar, precisamos de um banho de mar. As pessoas na rua, as tarefas diárias. Malditos burgueses que inventaram o trabalho. Entra um vento gelado de fim de tarde quando ainda é manhã, daquele vento que venta quando estamos trepando. Alguém chora alto na vizinhança. Chora e grita: não, não, não. Uma criança apanhando? Vamos derrapar outra vez na violência invisível que cerca nessa hora todas as manhãs. Uma criança chora na manhã: não, não e não. Pede, implora. As crianças só precisam de água limpa e respeito, disse aquele polonês. Todas as manhãs de nossas vidas. É um nome de um filme. Ficarão marcadas pela sombra. Queremos apenas abandono e silêncio quando crescemos. Água limpa e respeito também vão bem. Que Deus proteja também tua infância, amor da minha vida. Sim, eu sei. Amém.

segunda-feira, julho 03, 2006

A fome de ser você entortou os ladrilhos ou serão meus olhos vesgos? Havia água borrada de espuma de sabão na estrada, molhei os sapatos sem dar por mim. Toda vez que viajo me desocupo de ser você, fico inteira nos olhos dos objetos, e se eles têm raios de luz ou sombra me perco, não mais sei. Voltar pra casa é me deixar na janela do ônibus, do carro, do avião, é te reencontrar, sistemático, retornando à rotina, às contas, ao trabalho. Se não sou você nada faço. Eu não existo no caminho, nas cores corretas e vivas dos ladrilhos. Ser você me endireita o tanto espaço entre o que deixei de ser por acidente e o que, não por livre escolha, não voltarei mais a ser.

sexta-feira, maio 26, 2006

Todavia, o mundo...

Antes de calçar as meias, fechar as janelas, deixando só uma frestazinha para que o ar pudesse ser renovado (porque espíritos intranqüilos são assim, acham que o ar precisa ser renovado), me meto debaixo das cobertas, três CDs programados, 5 faixas 5 vezes repetidas, dentes previamente escovados, luzes apagadas, antes, bem antes, pensei, senti: o mundo, todavia, o mundo, querido, lá fora, que fazer com o mundo que nos cerca e não nos retém?

Nem que caiam tempestades lá fora irei me entristecer... Nossa noite, esta, dentro da rua quieta. Estendo meus desejos, você sabe, como uma colcha sobre a cama, uma colcha se possível sangrenta, disposta a engolir o sol caso ele entre agora no meio da chuva. Mas nada disso, não nos precipitemos, nada do de sol. É noite. É dia claro também. O silêncio dos pingos nos vidros, a chuva lenta, incessante e fina, janelas e carros e asfalto.

Se você está no parapeito de sua janela, quando a madrugada começa, quer pegar aquele velho casaco, o negro guarda-chuva e sair. Ao frio da rua. Só parar de vez em quando, por causa dos semáforos e suas ordens urbanas, uns instantes, pouca coisa, depois seguir, alheia, trêmula, sozinha, quase serena, na chuva. Deveria haver tambores quando nós, mulheres, andássemos assim. Ecos de violinos ou guitarras distantes, a nossa trilha barulhenta, melódica, pop, cadê? Escolher um corpo e seguir. Perdê-lo entre outros corpos de carros impacientes que atravessam a cortina. É a minha inocência, o resto dela, que é corpo intacto, carente, vago, que quero perder. Mas nunca em vão, compreenda. Oh, querido, me tenha inteiro em suas mãos. Complete o ciclo: a explosão das flores, a entrada das luzes, a queda dos frutos, a destruição das águas. Frio e chuva. Frio e chuva. Ausências. Guitarras. Vou formando a minha seqüência Johnny Marr e Vini Reilly, Marr e Reilly.

Existe um barulho tenso lá fora, os carros o trazem, os carros o levam, as pessoas colaboram. Cá dentro, posso ler o “lado pós-moderno do Oriente”. Outras pessoas com sangue nos olhos e palidez facial. Ossos saltando na pele. O dia é regido por Virgem. Uma boa técnica é: usar alfazema em excesso, não prestar atenção, esquecer. Espalhei pelo mundo a purpurina do seu nome, disfarçando por dentro o ciúme – a lepra sobre a qual jogamos sândalo. Você jamais vai saber o quanto sei cobrir as coisas podres de sândalo, o quanto sei fingir que está tudo bem, está tudo bem, está tudo bem. Como se fosse aquela canção da Legião Urbana. Lembra?

segunda-feira, maio 01, 2006





O tempo é mais rápido que tudo.
Melhor esquecer.
Quanta coisa vai ficando pela metade.
A pior parte da vida é esta: olhar a porra do mosaico lá atrás, brilhando, pirraçando, seduzindo, convidando. Nos iludindo que podemos voltar e refazer.
Ora, refazer!
Podemos coisa alguma. Um cu, uma boceta, o cacete que podemos. Ciência errante: olhar rapidamente pra trás, todo dia, e dar as costas.
De relance.
E seguir em frente.
E não sofrer.
E seguir em frente.
E não congelar os ossos.
E seguir.
E agora, de verdade e seriamente: te esquecer.
Naquele tempo, eu não sentiria jamais teu peso,
ou melhor dizendo: a tua perda abrupta de asas.
Eras pequeno e desamontoado em mim.
Era cedo.
Estávamos longe.
Arquivo de faltas ponto com ponto br.

Um pouco por carência (20 anos apenas, você se lembra?), um pouco por ignorância,
passamos tantas vezes em silêncio,
um pelo outro.
Posso estar tendo muita sorte ou muito azar ao te receber agora.
Depende.
Já diria aquela lenda: só o tempo nos irá dizer.

domingo, abril 30, 2006

"Há perfumes tão violentamente antigos/ que nos abismam", João Filho


Não posso mais mentir: trepei contigo na Praça Marechal Deodoro da Fonseca. E era sol claro-forte-claro em Bom Jesus da Lapa. Você me falou coisas boas, coisas tontas, tudo sobre a ausência de asas e outros achados que habitam a mente rachada de poeta que tens. Entramos e saímos de túneis, espaços vazios de estrelas e com estrelas, outras cidades, chuvas & vento, noite inteira, manhã e tarde também. Não posso mais esconder do mundo o quanto faminto te acolhi, o quanto de sede me saciavas. O quanto gritavas. Dentro, tão ardendo, tão carne. Ali, embaixo do sol cada vez mais claro de Bom Jesus da Lapa, eu fui finalmente tua. Não consigo mais fingir.

sábado, abril 29, 2006

A Terra azul & teus pêlos, amormeu


A Terra azul, teus pêlos, acordei toda doendo, não sei se você sabe, amor meu: Artur Bispo do Rosário queria salvar uma cópia de tudo que era belo & importante neste mundo, numa nave espacial. Pra quando chegasse o Dia do Juízo, poder enviar pra outro planeta tudo aquilo que não merecia de Deus nem julgamento, nem fogo, nem caos.

Falando em caos, te confesso: estava quase refeita. Mas sonhei contigo outra vez. Sonhei que trepava contigo no sonho que queria jamais ter tido. Era de uma intensidade absurda. Acordei toda rasgada. É ridículo, sim, é ridículo, eu sei. Um sonho desses tão incorpóreo e, ao mesmo tempo, tão corpo no corpo do outro, o teu.

Aquilo tudo que era por demais gigante. Aquilo tudo que não pode ser destruído. Aquilo que nos mata de tanto estupor – a beleza, tua beleza, na minha cama, de peito nu. Ele queria mandar a perfeição pro buraco escuro do universo, talvez até pra outro planeta. Veja você. O profeta. Condenar a perfeição ao infinito. Que idéia. Pra ficar girando, às cegas, pelo infinito, batendo de planeta em planeta, órfã, pagã. A perfeição que a Terra concebeu seria arrancada da Terra. Extirpada, mandada pro espaço sideral. Como acontece com teu sexo quando escorre do meu. A separação da beleza: flor de um lado, talo d’outro. Por causa de um Juízo. Um reles juízo. Nos tirar da solidez da Mãe-barrenta. A mãe-carambola-no-cio-chamando-a-mordida-de-nossos-dentes. A Terra azul. O nosso chão, a nossa única certeza. Veja você.

Portanto, para o profeta, o fim do mundo está circunscrito a este planeta. Isso foi bom de saber. Os outros corpos celestes podem até nos dar guarida. Como no exílio. Passar a mão na nossa cabeça, na madrugada-lombriga-nas-vísceras, a madrugada-desgraça-na-espinha, a madrugada-choque-nos-dedos. Um carinho nos cabelos, um sopro no ouvido, dizendo: tá tudo bem, coração-terreno, tá tudo bem, esquece, dorme, vai passar. Acontecerá isso em outro mundo? Será que em Vênus nos darão água pura, consolo, oxigênio?

Por falar em oxigênio, eu jamais entendo: por que desgraça você não pode ser completamente meu?

quinta-feira, abril 20, 2006

Para J.B.F.F.

Amormeu, mar absoluto, dos fios dos teus cabelos que ficaram pela casa – no sofá, nos lençóis – preciso, cautelosa, construir outra manhã.
Amor de um tempo que veio e não veio, de um perguntar eterno na cabeça, qual noite te terei inteiro, em qual vida serás só meu eu somente tua?
Seus dedos navegam na atmosfera de chuva e descoberta.
Estão em meu sexo, estão no cigarro que acendo, estão na janela dizendo adeus.
Ruminâncias manhã afora, manhã adentro.
Não se espante. Não tema. Permaneça.
Te falo as coisas mais claras quando a luz do sol falta.
Te falo as coisas mais duras, quando a claridade a tudo recobriu.
Amormeu, tempestade absoluta, não pedi jamais aos céus que viesses, não pedirei jamais que fiques.
O mundo me acostumou a coisas grandes: mares sem porto, felicidades maceradas, feito o vinho da uva, feito roupa no varal.
Nunca, jamais fui pouca
no centro da vida de todos os meus amores, os outros.
E assim acostumada a ser o muito e o tudo
derrapo miúda na manhã em que percebo: sobrará quase nada de mim no depois.
Mas não tenho medo. Não tenho medo: creia.
Ainda dentro dos teus pêlos, repito: é cedo, é cedo.
Ainda passeado a mão neles.
Ainda adormecendo.
Ainda grudando os lábios neles.
Ainda acordando.
Quero somente a eternidade e mais todos os dias deitada quieta entre teus pêlos.
Deitada quieta neles
Volto a ser absoluta.

domingo, janeiro 29, 2006

Poeminhas


De dentro


No mais, o sonho foi sempre uma ponte
pra te ver despida de agulhas.

A grande marca do crime sempre foi,
em momentos de extrema renúncia,
perceber o renunciado se aglutinando
em bolhas de cera líquida.

Deixar-se fazer em verbo,
o que é outra prisão.

Parto pra esfera onde não há bases de formas
(formas e não-formas se (d)entrecruzam),
uma árvore te tem em cor e voz
enquanto do teu corpo o mar acorda.

Gris empurrando verdes.
Gris. Átomos. Teoria:
vã.

Quando me disperso, estou lavada de cinza.
Quarto, nuvens, água, trago, café:
enxugam.

O lado de cá agora é ruminoso.
O lado de cá é uma afronta às cores.

domingo, janeiro 08, 2006

Não gosto nem de Machado, nem de Graciliano, nem de Guimarães, sou uma pessoa super-antipática, vá se acostumando.
Antes, bem antes, gostava de Cassandra Rios e dos poetas ultra-românticos.
Mas não faz mal, pouco importa, não vamos a lugar nenhum nem com os primeiros, nem com os últimos, pois tudo que pensamos vira papeizinhos coloridos pra se jogar da sacada do 12° andar.
Estamos é sem tempo: relógio no conserto, fronteiras a perigo.
Vou te buscar noutro mundo, então.
Quero te perguntar por que não há primavera nem um verão verdadeiro em teu planeta, só outono e inverno e minguados raios de sol.
Chego perto de ti e esqueço a estrutura que comanda a sua língua, como é que se iniciam as perguntas em sua língua, meu amor?
Não fosse a delicadeza do amor que nem mais encanta mas quer guardar um resto de elo dentro de nós, eu rasgaria tua imagem, cuspiria em cima, chutá-la-ia em direção ao terreno baldio que vejo lá embaixo.
Quero pronunciar alto o teu nome, na minha língua mesmo, quem sabe, quero relembrar/descobrir seu nome e dizê-lo milhares de vezes. Novamente.

quinta-feira, janeiro 05, 2006











Soteropolitano

Nunca se dividiu tantos nomes assim, nunca se embaralhou tanto, nunca do tanto fez-se toda compreensão. Das escolas foram guardados uns objetos (com eles as descobertas, com elas as repulsas). Dos sorrisos, algumas rugas, quem sabe também poucas mágoas.
Por isso está feia a inquietação. Está em quarto-crescente, como que encobrindo de gelo umas idéias mais nobres.
Quem sabe se das páginas que você imprime, os dias passem a sair menos turvos e, feito sinais, venham colorir também os postes, envolvendo o que quer de olhos, o que quer de atenção, dentro desta cidade lânguida.
Esta cidade é uma prostituta, os sexos todos ela distorce e ostenta. Eu quase que sinto o teu arriscar de homem distante pelas ruas dela, quase posso pensar no que te beira e se oferece.
Como a luz dos postes, nem sempre só nem sempre viva, cerco e clareio uns dias meus nos quais você figurava de um lado pro outro, com voz, pele e lentes de vidro confuso de homem distante. Fica tudo disforme sobre os muros feios que contêm Salvador. Uma americazinha fervendo, você talvez dissesse, uma esfregação de valores que caem e se enfrentam díspares... O que sua cidade descobriria hoje sob as poucas nuvens do mesmo céu? Uma América erotizada, em tempos de puberdade? Quais seria as tuas novas idéias acerca disso?
Não sei. Uma América leprosa, quem sabe, diante de pudores e medos que vão cada vez mais se eternizando.
Há de se admirar como os nomes são embaralhados nas bocas, como não se delineia de todo mas ainda assim persiste sobre as cabeças o traço contínuo das divisões: aqui, meu mundo; lá, o teu; ali, o deles; pra lá, o delas...
Liberdade deve ser o que te acolhe agora, em braços e lugares que desconheço, em números e nomes que não me guiam, em redes e sonhos que não freqüento - o conjunto de sombras de outra Salvador, a tua, que nunca vai me conter.
Eu poderia enveredar de repente por novos cartões-postais. Salvador fica prenhe deles quando março se aproxima.
Sei que também pensas agora, em algum canto da cidade só tua, nas imagens que a semana trouxe e que, na seguinte, vão sendo levadas... Imagens disformes de caras e diálogos que fazem parte do ontem e já nos vêm adulteradas, pedindo à poeira da mente passagem... Passagem pro armário? Quem sabe, quem sabe... Não posso evitar de dizer pra mim mesma: todo final de fevereiro é assim. E rasgo nomes e números esvaziados de sentido da agenda, repetindo em seguida alguma frase que ficou, sabe-se lá de quem, onde, quando, porquê, eu disse e você rindo concordou, ou você disse e eu ri e concordei, ou alguém disse e nós rimos em acordo, que acreditar na palavra é acreditar também numa espécie de explosão não-controlada, embora prevista. Mas explosão mesmo de quê? Eu me pergunto agora: desmemoriada, no escuro. Algo que por certo não tem grande sentido e você, com certeza, já não se lembra mais.

Em Não se vai sozinho ao paraíso, primeiro romance que integra a trilogia místico-erótica de Állex Leilla — cujo centro são as micro-...