segunda-feira, novembro 28, 2005

Henrique & o Incesto

Correio da Bahia

Mais críticas

Orelha

A orelha de "Henrique" - que muito me orgulha - foi feita por André Seffrin e republicada depois na Revista Online Bestiário.

Henrique, romance, Salvador: Ed. Domínio Públicco, 2001, 215p.

Seu olhar, seu movimento.
Simulacros pela casa.
Cama, pasta de dentes, toalhas úmidas.
O gel pós-barba dele é a base de extrato de ginseng, está escrito que revigora as fibras elásticas da pele, que protege o rosto contra a poluição.
Está em quase toda a casa, principalmente nos colarinhos das minhas camisas, a fragrância de ervas suaves, de mato tocado por longas chuvas. Nas camisas sem colarinho também está.
Em tudo em que ele encosta o rosto.
O cheiro dele.
Só o meu cigarro dissipa.
Não queria que dissipasse.
Ele desenha uma borboleta com as cinzas dos meus cigarros.
Desenha na mesa onde tomamos café.
No vidro da mesa. Afastando a toalha de flores brancas e marrons.
Bate as pálpebras quando diz que as borboletas, Rique, sempre me lembram você.
Muito obrigado, eu digo.
Assim acabo acreditando em provas de amor.
Pondo uma música. Convidando você pra dançar.
Em meu ouvido ele repetia que a neve começara a cair, não pararia nunca de cair. Que neve?
Era a letra da música.
Eu não sabia uma vírgula de francês e estava mais vulnerável que ele.
O peso dos corpos forçando a sala a girar.
De repente, suavizou-se.
Tudo. Tudo.
Pensei que jamais seria tão perfeito assim.

[...]
Toquei de leve em suas pernas, subindo a mão pelas coxas até onde “deixassem” eu ir...
– ‘Cê não vai dizer depois que tem medo? – ele sussurrou se aproximando mais.
E mesmo que eu dissesse, o desejo tomava-nos o quarto e a razão, tão forte que calava o tal medo – se é que queremos admitir sua existência. Ainda assim, eu não sabia muito sobre quais atitudes tomar, creio que ele também não, pois ensaiávamos um ato e parávamos na metade.
– O que vamos fazer agora, Vic?
– O que você quer fazer?
Tudo que eu tencionava como iniciativa, ele armava antes, mais ágil. Por que éramos homens? – hoje eu me pergunto qual era o problema – ou por que não nos sabíamos homens?
Ele apertou minha cabeça contra o peito:
– Não vamos começar pelo mais difícil, Rique...
Difícil era ver as mãos trêmulas e não se inquietar. Eu, acima de tudo, me aborrecia. Queria fazer um monte de coisas nele e podiam não ser coisas permitidas. Eu tinha coragem para arriscar fazê-las e esperar as reações? Não, não tinha. Perguntar também não era verbo de se lançar mão naquela hora...
Mordi-lhe o mamilo direito até que ele, não suportando mais, arrancou de vez o meu rosto de seu peito. Eu estava machucando-o.
Por que ele não cede? Eu pensava, enquanto as imagens de um filme erótico que vimos juntos me atordoavam. Cada vez que eu o apalpava, ele endurecia o corpo como se estivesse pronto a me enfrentar.
Campo minado.
Subi em cima dele, apertei-lhe nos ombros. Enfiei a língua em seu ouvido.
Nada.
Deitei outra vez do seu lado.
Meu pai bateu na porta. Pelos passos eu sabia que era meu pai.
Não me mexi.
Esfriava muito. Cobri o rosto com o lençol. Me sentia extremamente ridículo. Tive pena de mim e dele.
Eu o vi se levantar, fechar a janela, apagar a luz.
Compreendi que recomeçaríamos tudo de novo. É uma tortura – murmurei fechando os olhos, enquanto o Vic puxava o lençol da minha cara e tomava minha boca na sua com violência. Resisti ao beijo. Empurrei-o, avisando que ele me machucava.
– Me perdoe. – ele disse. – Não faço por mal...
E eu, por não esperar tal frase, me perdi todo na hora de dar prosseguimento aos abraços e carícias que deviam acontecer de mim pra ele, dele pra mim.
Tão desconexos quanto os meus movimentos, foram os pensamentos que tive. Vi um morcego bailando no quarto e ri nervoso: “Batman”. Sei que ele entendeu “bata-me”, pois sua pressão no meu membro afrouxou e eu senti a voz quente me perguntar por quê. Por nada, disse-lhe, é que estou muito tenso, e quase me esmaguei no abraço que então trocamos.
– Mas você não quer apanhar, né?
– Não, não quero.
– Não fica tenso assim, não...
– Tá...
– Nossa amizade é muito mais importante...
– Hã-hã...
– Porra, eu morro de tesão por ti, cara!
– Eu também, Vic...
Quebrávamos nosso próprio ritmo com palavras.
Vagas idéias sobre o cabível: mão na nuca, ele tirava. Me imobilizava a cintura, eu desatava. As pernas disputavam, às tesouradas, quem era o encaixe, quem era o encaixado. Venci sua força por uns instantes jogando-o por baixo. Mas não, não queria que fosse assim. A estranha relação dos nossos corpos com o momento da entrega nos pontuava de ponto e vírgulas, eu diria que estávamos entremeados de reticências.
A verdade é que me cansava, rememorando as tentativas de amor que resultaram num silêncio pesado de disputa. Ora, disputar mesmo o quê? Articulei a escolha pelo não-movimento, a não-resposta aos gestos dele. Podia?
Não. Eu tinha muito sangue irrigando a região de baixo. Tanto que me atrapalhava com as roupas, com o zíper que, pra marcar outro clichê em nossa história, achou de emperrar.
– Boceta! – xinguei.
O Vic gargalhou enquanto enfiava a mão por trás de mim, quase me levantando. Disse pra eu ficar relax porque tínhamos a noite toda. Qualquer coisa, depois a gente ligava pros pais dele e dava uma desculpa. Que ele não teve como voltar etc. O tempo estava mesmo fechando...
– Vai chover, não vai? – perguntou de repente.
E eu ia saber lá de chuva numa hora daquela? Não queria saber de tempo fechado ou aberto, não queria ficar relax, queria era foder.
Ele ficou sério, como se eu estivesse ofendendo-o.
– Estou te ofendendo, Vic?
– Claro que não.
Repeti mais umas duas vezes. Definitivamente, o que eu queria era que nos fodêssemos. O Vic concordou um tanto rouco no meu ouvido, ele também queria, muito, muito. Falou um palavrão à toa, me machucou entre as suas pernas. Falei outro, não me aperte aí, seu porra. Tá pensando que sou o quê!
Ele veio com maquiavelismos:
– Agora, aqui na cama, vai ser o que eu quiser. – e prendia meus braços, me imobilizava inteiro.
– E você? – eu perguntei – Também vai ser o que eu quiser?
Ele confirmou: totalmente.
Ficamos nos olhando parados, creio que devido ao peso das confissões.
Fui me deixando ficar dentro do calor que começava de mim pra ele, dele pra mim, sentindo o que havia de não-perfume no peito, nas axilas nossas. Amava, por fim, aquele que eu sempre quisera desde o primeiro estar no mundo. Ensaiamos maneiras, ângulos. Paramos.
Recomeçamos.
As mãos são sempre cruéis e, Deus, como eu arfava! Depois de tanto tempo, quando finda a espera, um segundo é tudo. Do meu peito irrompia uma espécie de grito aos pedaços, como quando você abafa e o ar foge aos pouquinhos, sem alvoroço. Do Victor, só vinha loucura. O corpo atiçado num desenfreio sobre mim, eu não conseguia mais guiá-lo, seu pedir entredentes: “amor, me estraçalhe” me catapultava contra a parede do seu corpo, nossas paredes e nossos corpos... Ditas assim, talvez essas coisas de nada valham. [...]

domingo, novembro 27, 2005

Para passar o domingo


Lista de coisas pra ajudar na relação cármica com o domingo:

a) andar sem rumo por ruas onde você nunca vai;

b) ler livros de poesia;

c) arrumar guarda-roupa, estante, gavetas etc.,

d) gravar um cd com suas músicas preferidas (depois você dá a um amigo-vítima)

e) comer frutas o dia todo (por exemplo: salada de frutas gelada com mel)

f) ler um conto do Julio Cortázar;

g) assistir àquele filme que você ama de paixão, no vídeo ou DVD;

h) escrever cartas a amigos distantes (email não vale!);

i) tomar café com licor de chocolate.

sábado, novembro 26, 2005

Obscuros, Salvador: Ed. Oiti, 2000, 117p.


OUTROS ELEFANTES

Sob o céu frio e cinza/ um impasse e poucas opções/ não há rosas no jardim/ e há tempos não se ouvem os rouxinóis/ se eu soubesse amar, eu cravaria/um espinho ao meu pobre coração/ vermelha então seria a rosa/ e entre as outras brilharia como o sol... (O rouxinol e a rosa: Herbert Vianna)

Quando você trouxe aquele pedaço de papel com a letra minguada dele, escrito duas horas antes do suicídio, eu estava, se não me engano, com uma taça de champanhe na mão. Se não estava bem, pelo menos eu tentava esquecer.
Não ele, que eu jamais esqueço. Mas a dor de sabê-lo morto antes de mim.
Sentada na beira da plataforma, olhando Itaparica de luzes acesas do outro lado, eu não via o vermelho das janelas, das portas, nem a vida azul-marinho do MAM e do Solar. Estava me fodendo pra tudo à minha volta. Era assim que estava, como você, aliás, já deve estar farto de saber.
O mundo baiano de exposições cretinas, quatro salas sem sequer um quadro capaz de me atrair... Me pergunte o que eu fazia naquele dia, olhando instalações e cores estupidamente vazias, que não saberia lhe dizer.
O mundo de azarações, roupas MTV, licores e vinho branco em garrafas azuis, passando, passando... Sempre muito atrás de mim. Do outro lado de mim, talvez. A essas alturas, os amigos se tornavam meras pessoas vagamente conhecidas; as pessoas meramente conhecidas tornavam-se estranhas; as estranhas transformaram-se em ratos, baratas, sapos.
Tua chegada a esses meios era a grande badalação. Principalmente porque, bonito pra caralho como sempre fora, todos em Salvador, quer fossem homens quer fossem mulheres, queriam com loucura te comer.
Mas eu não, eu estava de dieta rigorosa. À base de ódio e saudade mordaz dele, daquele de quem você trouxe a letra minguada num pedaço de papel.
– Ele deixou isso em meu casaco, um dia antes de morrer... Está endereçado a ti...
Apertei sua mão com desajeito. Meninas não apertam mãos de meninos, no máximo, beijam-se no rosto...
Na outra mão havia a taça de champanhe...
Pensei em segurá-la com segurança enquanto lia o bilhete que ele me deixara... Por que no bolso do seu casaco? Eu quis logo saber.
– Porque eu o emprestei na última vez em que saímos, ele sentia frio... Depois de seu suicídio, a família dele me devolveu o casaco sem lavar e lá estava esse bilhete...
Ardência na mão direita.
Com a esquerda segurei firme o papel.
Meu sangue escorrendo pelo pulso, manchando a camisa marrom de mangas compridas...
Ouvi você gritar:
– Ei, cuidado, você vai se machucar com essa taça...
Mas já não havia taça, os cacos cristalinos, tão finos são os cacos de uma taça de champanhe, entrando na carne cheia de nervos da minha mão direita.
Chorei sem sentir a pele, ouvindo você me pedir calma, mandar que as pessoas se afastassem, tirar devagarinho os pedaços de vidro da minha mão... Precisamos conversar, você dizia, olha só como ficou a sua mão...
Os amigos: meros conhecidos; os conhecidos: simples estranhos; os estranhos: ratos, baratas e sapos; se acotovelando às suas costas.
– Precisa de ajuda, Ângelo? – disse um dos rapazes que queria te comer. Moreno ele, de cavanhaque.
Uma mulher disse com desejo no olhar:
– Querido, você devia levá-la pra um posto médico, um hospital...
Um outro rapaz acrescentou:
– Se precisar, eu estou de carro aí...
Enquanto isso, sua voz era soberana:
– Não se preocupem, deixem-nos em paz, por favor...
E eu pensava desgraçadamente ferina: o cara é de mel, todos querem comê-lo.
Sim, eu sei. Amanhã, tudo já estará diluído outra vez dentro de mim. Mas, por enquanto, sinto as brumas da parede me tocando...
E penso nele, a obsessão dele em desenhar pássaros machucados e flores escorrendo pus e sangue. As obsessões estarão também engavetadas no cemitério?


Os óculos escuros escondem a feiúra das pessoas. Por isso mandei fazer óculos de graus de lentes escuras pra mim. Tenho 3,5 de miopia. E sempre quis ser bonitinha. Sempre quis porque não sou, entendeu? Assim, mesmo quando é noite, saio de óculos escuros pela cidade sem me importar com a dor de cabeça que resulta desse hábito. É que forço demais as vistas, as luzes da cidade são fracas pra minhas manias de esconderijo.


Andamos até o estacionamento e você repetia: será que ficaram muitos cacos em sua mão? Você está sentido dor? É perigoso isso, você pode pegar tétano.
Eu sei, e AIDS também, e gripe, e câncer no útero ou no pulmão.
– Por quê? Você fuma muito?
Oh, Deus.
Não sentia dor alguma. Só ódio, saudade dele misturada a um cair de temperatura no corpo. E sede. Ausência total de saliva na boca.
Cochilei dentro do seu carro, no caminho pro hospital, e tive uma miragem de pesadelo horrível: parece que sonhei que enlouquecia, tenho a sensação vaga de que todos me ignoravam na rua, eu babava e não sabia escrever nem falar direito.
Brincadeira estúpida da minha mente. Tenho medo de enlouquecer, então, quando durmo, ela inventa esses sonhos ridículos. Seria bom não dormir mais nunca, vou tomar um monte de café até estourar o cérebro.
– Café? Café não estoura cérebro de ninguém, menina.
– Não me chame de menina, não sou virgem há muito tempo.
Você riu. Me achou muito esquisita: triste e engraçada ao mesmo tempo. Será que podia tal combinação? Podia, eu disse, é tipo pessoas do espírito de naja. Naja? Você não entendeu. Ah, não vou explicar, leia Caio Fernando Abreu: Pequenas epifanias.
Você aproveitou o sinal fechado e fez uma coisa que jamais esperei de um homem: pegou agenda e caneta no porta-luvas e anotou o nome do autor e do livro que indiquei. Ainda perguntou a editora, se era fácil de achar etc. Fiquei pasma: será que você é mesmo um menino?
Então esmoreci. Parei de te achar apenas um ser do sexo masculino, de rosto e corpo bonitos.
Depois do atendimento no Hospital Santo Amaro, sai amortecida do teu lado. Sentindo formigamento na testa por causa da medicação que me fizeram tomar, e absolutamente nada na mão, pois me deram também anestesia local.
Resolvi te contar, entre uma chama de razão e outra de incerteza e letargia, a última vez em que falei com ele pelo telefone.
Tácio estava de meias brancas e sandálias havaianas pretas, calças de moletom cinza, blusa de mangas compridas azul-escuro, e havia descido minutos antes pro playground, pra fazer barulho com o martelo.
Vieram os homens do bem e de direito pra amarrá-lo. Isto é: seu pai, o irmão, um dos porteiros.
Eu estava cansada e, como sempre, fumava muito. Mas ele me ligou chorando, estavam lhe proibindo tudo, até de respirar. Então, esqueci o cansaço, peguei um avião e fui vê-lo.
Reclamava o tempo inteiro: ninguém dava mais brecha pra ele martelar.
Alguém vendeu ou jogou fora o seu martelo.
O jeito era assobiar, ele me dizia.
A mãe dele nos rondava, entrava no quarto com desculpas de chá e suquinhos. Na verdade, ela queria saber sobre o que conversávamos. Durante toda a nossa adolescência foi assim: ela nem ninguém da família aceitavam naturalmente nossa amizade. Sabe lá Deus o que achavam de mim. Ele sempre me afirmava: todos nessa casa têm ciúmes de ti, minha amada. Só o fato de ele me chamar assim – minha amada – sem nunca termos ido pra cama, já era muito estranho pra quem nos observava.
– Você sabe, na casa dele ninguém mais o agüentava...
– Mas, Ana Clara, vocês deviam estar morando juntos há muito tempo. Nunca entendi porque você não o tirava de lá.
Ah, isso é que não! O menininho bonito está me chamando de negligente.
– Seu imbecil, você não imagina o quanto tentei viver com ele, fugir da família e tudo mais...
– Nunca deu certo?
– Nunca. Ele próprio pedia pra voltar. Precisava da janela de seu quarto, precisava do cheiro da casa dos pais, precisava da paisagem de cortina dos prédios de São Paulo. Ele me dizia: sem isso, não sei desenhar. Desenhava o tempo todo. Quando não, pegava o martelo e começava a fazer barulho.
– Disso eu me lembro muito bem, inclusive do meu carro que ele arrasou todinho certa vez...
– Ele martelou seu carro?
– Você não soube?
– Não.
– Mas os pais dele pagaram o conserto.
– Às vezes, eu invejo o seu trânsito na casa dele. Pra mim nunca foi fácil. Aquele olhar de viés me atravessando. Se bem que, normalmente, mandava tudo pra puta que o pariu...
– Tenho sorte por isso?
– Não sei. Acho que sim. Eu gostaria que respeitassem minha amizade com ele, como respeitavam a sua... Mas não, achavam que eu o influenciava, que ele piorava com as minhas visitas...
– Bem, não sei se éramos tão amigos assim. Nós fomos colegas de colégio e até fizemos vestibular juntos, antes de ele enlouquecer. Mas acho que se havia alguém que Tácio considerava no mundo, era você, não eu.
– Eu sei.
Mas nem tudo que você diz é verdade, ele nunca enlouqueceu realmente, acho.
Sei disso pelo bilhete bastante claro que ele deixou pra mim: descobri, minha amada, que do lado de lá há milhões de martelos, por isso não perderei tempo. Me perdoe se estou indo sem você. Mas é por pouco tempo, certo? Estou te aguardando.
Repeti em voz alta o conteúdo.
Teus olhos esqueceram a direção e se voltaram pra mim vesgos:
– Você irá, Ana Clara?
Te olho nos olhos: tens uma expressão de ansiedade e espanto.
– Por que todos querem te comer, Ângelo? – pergunto à queima-roupa.
Riu, você riu alto e sem jeito. Que papo era aquele? Eu estava maluca?
Não, apenas percebia.
– Você é mesmo muito esquisita.
– Mas é verdade...
– De onde tirou essa agora?
– Eu observo bem.
Balança a cabeça em negação.
Cala-se.
O carro desliza pela Salvador mais deserta que já conheci.
Todos morreram, será?
Você quebra o silêncio:
– Por que estava tão sozinha na plataforma?
– Lembrei que era aniversário dele e nem em São Paulo nem em Salvador haveria parabéns...
– É verdade. Caramba, ele faria 31 anos hoje.
Olho pro relógio e você percebe:
– Ontem. – pronunciamos juntos – Ele faria 31 anos ontem.
Porque já passa de 2:00 da manhã.
Então pensei, só porque chovia e era muito, muito cedo, que ontem, no aniversário dele, não pude ficar em casa, saí sem rumo e de repente eu estava descendo a Contorno pra ver fotos e quadros no MAM. A pé, como sempre, e com medo de ser vítima de algum moleque mau.
Veja o que pensamos nesse tempo!
Andamos como bichos que se assustam com o aproximar de patas alheias.
Estou seca e choro sem querer.
Te peço pra parar numa banca de revista na Oceania, das que nunca fecham, e compro cigarros mais fortes do que os “frees” que andava fumando.
Te confesso: penso 24 horas em morrer. Não gosto da minha vida, não gosto de estudar nada, não gosto de trabalhar em nada, sou vulnerável às perdas, nunca esqueci o rosto de minha irmã sofrendo pra não morrer. Ela sim, era apegada à vida. Antes tivéssemos trocado de lugar.
Você diz que me entende, mas, se eu continuar falando assim, vou te fazer chorar.
Chorar? Acho graça. Meninos não choram, baby.
– Eu não sou menino – você diz sério – Há muito que já esporrei.
– Esporram demais, vocês – digo de escárnio.
– E o que quer que eu faça?
– Nada. Porque também dá no mesmo.
O caso é que ninguém viria me acordar de manhã com café e hibiscos e beijos fugazes no queixo, no nariz. E eu cansei de esperar.
O mundo está passando a faca afiada em nossos sonhos.
Você não vê.
Se preocupa em pôr o carro na garagem do teu prédio. O portão eletrônico se abre devagar pra nossa entrada.
Será essa madrugada de vento minha única verdadeira companheira?
Estou dentro do espaço amarelo-luminoso. É minha dor permanente. É só assim que sei viver.
Espero você reaparecer, acabar de fechar o carro, sorrir casualmente, apertar o botão do elevador.
Não me iludo. O máximo será: corpo e bater frágil de asas. Depois: a solidão.


Ah, o amor. Qualquer palavra serve pra dizer dessa alegria: a luz se acendeu de novo... e quem sabe, quem sabe: a porta nunca mais vai se fechar...[1]
Avanço em busca dos teus beijos, tenho um mar absurdamente revolto querendo todas as bocas sobre mim. Desde quando eu tinha essa sede de beijos? Ê Batumaré, é sempre bom voltar...
Derrubamos um vaso de rosas meio murchas que você usava em cima da mesa da sala.
Cuidado, amor, nada de machucar as flores já mortas...
Vamos pro seu quarto.
Porta estreita nos conduz.
Reparo nas fotos de bichos na parede: uma borboletinha roxa e negra presa numa rede imensa; um elefante levantando poeira num deserto cor de vermelho-carvalho. E os desenhos de Tácio: rosas podres, pássaros feridos.
Você emoldurou os desenhos dele e deixou um canto da parede, à esquerda de quem entra, só pra mostrá-los.
Era isso que ele fazia: terminava os desenhos e dava pros amigos. Eu tenho seis variações dessa mesma rosa cor de carne, metade afundando num charco, metade espirrando sangue.
Mas te abraço, te abraço forte pensando em quantas vezes o corpo dele me fugiu das mãos.
Minha boca mordendo a sua, nossas mãos se livrando das roupas, nossas peles colando-se uma à outra, você me largando de repente, tateando as gavetas, atrás de camisinhas. E eu lhe dizendo: quem se importa? É tudo uma questão de minutos, com AIDS ou com saúde, daqui a pouco, só o mínimo restará.
Nada me tira a presença disso: a fugacidade de seu sexo saindo de dentro de mim, se confundindo com o de Tácio. O sexo de Tácio, eu digo depois, já quando estamos no cigarro, que eu só conheci em descanso.
– E por quê? – você pergunta sem entender.
– Porque ele era impotente.
– Tácio?!
– Ele, claro.
– Totalmente impotente?
– Yes...
Você passa a mão no rosto e encara o teto:
– E eu pensava que ele era viado...


E depois, querido, depois te encontrarei do outro lado da verdade, entre o corpo e o desejo, essa linha invisível da paixão.
O toque entre os fios de cabelo e os pensamentos. Você exala e ri.
Bate lentamente a cabeça enquanto movimenta o corpo no escuro total. Tudo é separação e tristeza no movimento vazio do teu corpo que ontem amei.
Deita um segundo.
Pensa como pedra, se você fosse pedra, te levaria agora pra beira do mar... Veja que coisa bacana: eu te levando pra beira do mar.
Andarias nu no mar, estarias submerso.
Mas teu sangue é vivo e circula.
E, pelo telefone, você me faz saber que: se por acaso fosse Tácio, não desenharia mais espinhos no pobre coração das rosas, que vivem sofrendo a expulsão de líquidos que elas não têm...abandonaria as dores das rosas, devolveria as asas, os olhos, os pés e os bicos que ele vivia tirando dos pássaros, naquela criação doente que não conhecia leveza, só funduras e cicatrizes...
Te ouço ilesa, com o bilhetinho que você trouxe dele entre os dedos: faço um rolinho com ele, como se fosse cigarro.
Se fechar direitinho os olhos, posso vê-lo zanzando no espaço, afoito a segurar os martelos que passam feito borboletas bem perto de seu nariz.
O nariz dele.
Tácio vivia tão bem dentro do seu próprio mundo, pra que mexer nisso?
– Não sei se você se lembra, Ângelo, quando ele foi punk...
– A única coisa da qual me lembro, Ana Clara, é que ele não era feliz...
Isso é bem engraçado, meu querido: ele não era feliz!
E nós, o que somos?
Desligo o telefone te pedindo que esqueça os consertos nos desenhos de Tácio: ele nunca precisou de ajuda de ninguém.


Andar em cima de saltos enquanto a cidade silencia.
Aprendi a gostar de homens e esquecê-los às 3 da manhã.
Quando você chegar de novo em Salvador, vai me achar água gelada, escorrendo quieta, mais quieta que qualquer chuva fina, nesses dias que não são meus.
As luzes brigam lá fora pra ver se decidem que cor dar ao resto de noite, ao início da manhã. E é verde, branco-amarelado, azul-cintilante, rosa-néon, azul-metálico, lilás: a Bahia também se prepara pro natal.
Estudo idéias velhas sobre a economia nacional, trabalho 40 horas por semana e viajo sempre que posso pra praias distantes ou cidades ribeirinhas. Vou concorrer pela faculdade a uma bolsa de três meses na Espanha. Ando pedindo a todos que encontro: torçam por mim. Ouço sempre Os Paralamas, bebo e fumo pra caralho, agora peguei uma mania superboba: estou colecionando cartões-postais. Principalmente em preto e branco, que são os mais difíceis de se achar.
Mas sua voz ainda me vem vez em quando, e como naquela noite de amor, se mistura à dele, de Tácio, gritando dentro do sonho:
– Minha amada, você não vai acreditar, aprendi a pintar girassóis.
Ou:
– Não se mate, Ana Clara, por favor, não se mate. Eu venho te ver no verão.
Se é você quem me conta sobre a descoberta das flores, ou se é ele quem me pede pra não morrer, não sei. As vozes estão anoitecendo e amanhecendo comigo, as vozes nunca nítidas e sempre distantes, em meus tímpanos, não estancam jamais.

[1] Ê Batumaré: Herbert Vianna.
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Esse é o terceiro conto de Obscuros, meu segundo livro de contos, em edição Pocket, pela editora baiana Oiti. Obscuros só tem 4 contos: "Maria Madalena", "Cara de fumaça" (quase uma novela!), "Outros elefantes" e "Anankê". Eu ainda me chamava "Alessandra Leila".

sexta-feira, novembro 25, 2005

Quando eu morrer que não me enterrem...



Quando eu morrer, não me enterrem aqui. Em Bom Jesus da Lapa. Por favor. Tenho rinite alérgica. Vou ter problema de pele, com certeza. O sol racha a terra, invade a cova - aqui nem tem crematório!, é barro na cara mesmo - e nos cozinha tudo, por dentro, por fora. Depois de mortos, ainda temos o que proteger. Se é que me entende... Provavelmente, não. Com essa mentalidade de jeca que você tem: ah, não acredito na vida após a morte, Deus não existe, o ser humano é todo perecível e blábláblá, todas essas frases óbvias do Almanaque Completo Da Razão Ocidental. Ô bestage!, meu Deus. Grande merda é sua crença, seu pensar inútil, sua visão rasteira que você gosta de dizer "cética" pra criar clima em torno de ti. Vanitas Vanitatis. Todavia, não se ofenda. Foste o único que amei. Tá vendo como ainda uso a segunda do singular? O único. No universo inteiro de 306 homens, entre meninos, rapazes, coroas e gays. Me proteja, amore mio. Me proteja depois.
Trecho do romance "Longe tão longe".

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Depois de ter sido acusada pelos meus conterrâneos de não falar bem da minha cidade natal, Bom Jesus da Lapa, a cidade das moscas e das muriçocas, estou escrevendo um romance que se passa lá. Mas não falarei mais das moscas e das muriçocas. Nem da secura do rio, nem do calor seco da cidade, nem da poeira sem fim. Falarei dos flamboyants e das borboletas. Das ruas de pedras quietas às 3 da manhã. Isto é, tentarei falar. O romance está em "processo". Veremos o que se consegue com isso.

quinta-feira, novembro 24, 2005

E já que falei em Ana Cristina Cesar, my mother...

... falo agora de my father, Caio Fernando Abreu. O link é pra um ensaio teórico, extraído de um capítulo da minha dissertação de mestrado (Letras-UFBA), sobre a loucura e a homossexualidade nos contos de Caio Fernando Abreu.

Sem dúvida alguma, Caio é o texto literário que mais me captura, entre todos os textos que nos estendem a rede e nos quais nos enredamos, ao longo da vida.

Só quem já teve um dragão em casa pode saber como essa casa parece deserta depois que ele parte. Dunas, geleiras, estepes. Nunca mais reflexos esverdeados pelos cantos, nem perfume de ervas pelo ar, nunca mais fumaças coloridas ou formas como serpentes espreitando pelas frestas de portas entreabertas. Mais triste: nunca mais nenhuma vontade de ser feliz dentro da gente, mesmo que essa felicidade nos deixe com o coração disparado, mãos úmidas, olhos brilhantes e aquela fome incapaz de engolir qualquer coisa.
(Caio Fernando Abreu: Os dragões não conhecem o paraíso)

Conheci a literatura de Caio em 91, quando morava, por acidentes estranhos da vida, em Maceió. Arla Coqueiro, que veio a ser uma grande amiga depois, me emprestou os livros Pedras de Calcutá e Morangos mofados. Li os dois ao mesmo tempo e jamais fui a mesma. Explico: morava muito perto da praia em Maceió (Ponta Verde), e naquela época de "deprê" total (eu estava no fundo do poço), tinha o hábito de ir, de manhã cedo, andar na areia, tomar banho de mar, e depois, pra evitar o famoso suícidio ainda jovem, ficava intercalando a leitura de algum livro (geralmente de poemas, mas nem sempre) com o olhar o horizonte, o movimentos dos pescadores e dos barcos (sim, como naquela canção do Jards Macalé). Então, levei os dois livros do Caio numa dessas manhãs, porque não sabia por onde começar. Aleatoriamente, abri Pedras de Calcutá e li um conto chamado "Uma estória de borboletas". Um espanto. A história de um casal de rapazes que tiram borboletas do cabelo, primeiro um, depois o outro, enquanto enfrentam a loucura do mundo ao redor. Não, estou fantasiando. Não é assim. A história da diferença que precisa ser contida em camisa-de-força. Também não. Não é só isso. A história de dois rapazes que se encontraram, se amaram e se perderam na diluição do cotidiano a dois; que se isolaram na sua individualidade e enlouqueceram; mas se reencontraram depois, num hospício, quando precisaram lutar, juntos, pelo direito à diferença. Bem, mas não é só isso. Leiam o livro, leiam o livro, não há possibilidade de resumo, repasses. Vejam por si.

Anos mais tarde, na minha dissertação de mestrado, dediquei um capítulo a esse conto. Todavia, não cheguei a esgotar o encanto-estranho que ele me traz: todas as vezes que o leio, quero dedicar-lhe novos capítulos. O segundo conto foi "Além do ponto", também escolhido aleatoriamente no livro Morangos mofados. Outro espanto. Esse acompanhando, me lembro, de lágrimas (nessa época eu chorava muito, depois o choro secou). A história da eterna busca humana... de amor? De Deus? De si mesmo? Do complemento? Do desconhecido? De acolhimento? De compreensão? Um homem corta a cidade, a pé, bêbado, maltrapilho, dente cariado, sem dinheiro, molhado de chuva, dentro da chuva, em busca de uma porta que não quer abrir. Ainda? Nunca? Por enquanto? Ele anda e bate na porta. Bate, bate, incessantemente. Espera e desamparo. Solidão e desejo. Busca e vazio. E o que é melhor: tudo escrito na melhor linguagem que a literatura brasileira já produziu, prosa e poesia, poesia e prosa.

This my father. Depois dele eu tive que destruir três pastas com mais de 300 poemas e narrativas. Pensava que não poderia escrever coisa alguma depois de ter lido-o, porque ele já escrevera o que eu ambicionava escrever, há anos, sem conseguir. Engraçado que no mesmo dia em que destruí as pastas, acordei de madrugada tendo sonhos estranhos: no sonho eu estava escrevendo. E no sonho eu era exatamente ele. Porém, eu não o conhecia. Isto é, não conhecia a cara dele. O que nem é preciso, pensando bem.

segunda-feira, novembro 21, 2005

Infância: Ana Cristina Cesar


Estamos de volta aos
dias moribundos de ca-
lor e outono
onde as folhas gordas
viram e suspiram no si-
lêncio amarelado
onde vimos pela pri-
meira vez o brilho novo
do céu

estamos de volta
atrás de nós as ondas
da memória cercam nos-
sos gestos
o nascimento da tarde
é maior que as limita-
ções sem tempo

estamos de volta e pe-
quenos e sozinhos,
olhos, dores e sonhos
abertos diante do dia

estamos de volta ao mes-
mo lugar enorme e irre-
sistível/ às sombras mo-
ribundas de calor e
outono

Ana Cristina César: Infância

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Essa coisa linda aí em cima é minha afilhada, Hanna Clara. Quando estamos envelhecendo, a infância, nossa, dos outros, tomam o centro, seja como forma de fugir ao presente, seja como arma pra segurar o que não nos pertence mais. Só as narrativas do que fomos cristalizam a infância. E dão uma vaga certeza de que hoje somos a mesma pessoa de cabelos soltos, pés descalços, gritando de alegria, na porta da casa, pelo pai que chega do trabalho. Não somos os mesmos nunca. A pessoa que abriu este arquivo e começou a escrever já não é a que, neste instante, esconde um riso de escárnio pelo tema dejà vü. O tempo passa rápido, quando não sofremos . Mas "o tempo é um trem que custa a passar" quando algo nos agulha a carne. Todo aniversário meu acho um absurdo que me dêem parabéns: se estou envelhecendo, estou é perdendo, não ganhando, então, o que comemorar? Porém, agora, no meu aniversário, só consigo me lembrar que Hanna Clara queria cantar parabéns pra mim na casa dela, em Belo Horizonte, antes de cortarmos o bolo de chocolate com morangos que a mãe dela preparou. Eu detesto que cantem parabéns, é muito chata aquela música, meu Deus. Como explicar a uma criança que detestamos algo? Os afilhados, como o próprio nome diz, são filhos agregados, do coração, não do sangue. Hanna Clara é a filha que não tive. E Ana Cristina Cesar é a poeta que não posso ser.
Como diria o Renato Russo: FORÇA SEMPRE.

domingo, novembro 20, 2005

Mais Urbanos



Gelo

A descida da contorno ia ficando longe.

Ela possuía um agasalho e um guarda-chuva. Floral. Mas se diz mesmo é "sombrinha", isto é, a proteção das mulheres contra o tempo molhado.

Os prédios pequenos e as casas velhas, em fila, coladinhos. Ali, um prédio de oito andares todo todo amarelinho. Claro.

Ia ficando cada vez mais longe.

Ela tinha apenas duas pernas, nem grossas nem finas. Brancas. Como todo o resto.

No asfalto, carros quase nenhum.

Avistava o mar lá embaixo com tontura, porque andara muito. E a Contorno lhe fugia.

"Pamõõõõõõõõõõõõõõõnha", ouviu o vendedor na outra rua, "pamonha de milho, quentinha..." Parou pra um trago. Difícil acender qualquer fumo debaixo da chuva. O vento veio querendo lhe arrancar a sombrinha. Ergueu a proteção de tecido toda pra cima, e os ferrinhos se destacaram como esqueleto.

Ela riu: esqueleto de guarda-chuva!

Mas não, mulher diz mesmo é "sombrinha".

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Tenho que dedicar, mesmo depois de publicado, para Alex Simões, o poeta que gosta tanto deste... conto? Miniconto? Fragmento? Flash? Impressão?

Urbanos, 1997.


Amarelo-de-casca-de-fruta

Lutava com o vento e era de lenhar! Mesmo o amor que tinha no peito, mesmo o cão que se afastava achando estranha a sua luta, mesmo o sol que já lhe tomava os poros, nada, nada importava. Foco voltado pro piso, os olhos do rapaz só enxergavam a sujeira que com sua paciência brincava. Voava longe da vassoura. Voltava pro mesmo lugar. Corria maravilhosa pra debaixo dos móveis. Uma desgraça, uma desgraça.

O amigo veio e disse:
- Feche as janelas, meu bem...

Fecharam.

Foi o vento por hora vencido.

Mas, devagarinho, forçava os cantos da janela, da porta da rua, da fechadura. Cuspia à noite toda. Eles não viam. Corpos descobertos, os dois haviam de se entreter em suores e, depois do banho, em sonhos.

De manhã, ciscos pela casa.

A nova guerra conta com a fumaça de um incêndio num próximo terreno baldio. Fumaça que traz ruínas de papeizinhos aqui, ruínas de papeizinhos ali. Vão se aderindo ao piso, também ao tapete, também ao sofá. Alados pontos negros na atmosfera. Irritam os nervos. Irritam o nariz.

O mais novo dos rapazes volta a expulsá-los. Ou pelo menos, tenta.

Repetições, repetições.

Viver não é muito fora do quarto e da noite.



LEILA, Alessandra. Urbanos. Salvador: Fundação Casa de Jorge Amado/COPENE, 1997. 123p.

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Este é o quarto conto do livro, página 20. Escrito no Largo Dois de Julho, na janela do apartamento de um ex-amor (hello, Olivinho, where you are?), enquanto os lixeiros recolhiam o lixo da cidade, às 02 da manhã. Antes da reforma do Largo, é claro.

sábado, novembro 19, 2005

Revista AgudaQuaseGrave, Maceió/AL, 1991

Espelhos

A Arla Coqueiro e Gil Maciel,
meus primeiros editores


Não sei que tipo de sol havia quando vim ao mundo; não sei se na hora do parto usaram espelhos; sei que não há medo ou dor que não me leve a horas a fio na frente de retrovisores, pequenos espelhos de bolso, enorme vidraças, lugares em que me concentro, dispo a máscara, o feitiço, toda a encenação e, perdidamente, me olho, me odeio, me admiro, sem narcisismo, ou eu sou narciso?

Que espécie de medo enveredou em minhas sílabas tônicas? Quero fugir pro mundo sem destino das pessoas nada aflitas, nada sorridentes, nunca melancólicas, e contudo diferentes e alucinadas, a alucinação perdida do amor cruel que desumaniza toda a criação e cada tentativa de ser feliz.

Ser gente em abraços.
Ser gente e braços.
Ser gente e aço.
Eu te quero gente, letra, perfume, mormaço.
Odeio o seu cachorro maldito, esse ser mesquinho que você amarra do teu lado direito e atrapalha toda a nossa história. Você é um ser canino. Vive com fantasmas caninos. Sua idéia fixa de cão não me anestesia, mas me faz, estática, te esperar.

Não sei que horas são. Não se pode confiar aos relógios a missão de saber dignificar e desprezar instantes febris, instantes de morte e adulteração.

Você me adultera. Essa tua idéia demente de me perseguir avança limites. Você vai me estuprar na próxima esquina, eu sei e por isso grito, mas não tenho razão pra temer. Temer o teu contato? Não, não me amedronto com contatos. O que me amedronta então?

Meu primeiro beijo gay...
Um beijo homossexual...
Um gato homossexual...
- Vamos, flor, ao paraíso?

Você não vai me deter. Sua violência é fraca. Pulsos fracos, socos vagos, pontapés de mentira, não sinto dor, é um ato flácido. Uma bolha, uma bola, um balão.

Eu vim ao mundo em novembro. Agora creio que chovia. Há dores quando chove. Há um céu desaguando: você não vem, perdi tua coleira. Um vira-lata sumindo no mundo.

E eu na praça.
Eu no cio.
Corro pro espelho e... “Não era nada”. Não era eu.
O que é que você faz aí cheio de imagens?
Te vejo passar entre elas, pareces facho de luz.
Eram duas imagens e uma pessoa.
Ou não.
Era eu sozinha e a mentira.
Era eu?

Te espero no cio, na praça.

Já não tenho certeza, só febre.

Me lembro da gente no útero, sofrendo pra não nascer. Um de nós sumindo no aborto, eu era teu sangue, tua linfa, teu cordão umbilical.

Pra que você foi amadurecer? Eu te comia verde antes do vento te adivinhar no pé. Era uma árvore gigante, folhas amarelas que enfeitavam o céu.

Quero voltar do mundo diferente. Não era essa a saída, não quero alienar o sentimento, o amor é a comédia, não quero tragédia, não quero, não quero...

Por favor, vire qualquer objeto que eu possa carregar na mão. Um chaveiro lhe cai bem. Ou então um inseto, um grilo no meu cabelo, um mosquito no espaço dos seios, ou pêlos, somente pêlos, que eu não possa arrancar.

Absurdo! Leviano coração. Prostitui-se, perde-se, por pares de olhos, faíscas de olhos, vulcões de olhos: fascinação vadia.

É o fim.
Partiu-se.
Muitos, muitos retrovisores.
Tantos, diversos caquinhos de nós.

A noite foi-se.
De noite eu era um anjo.
Acordo, corro pra frente do espelho.
- Eu não sou narcisista.

Vi flores na praça, nunca cachorros.
Você pôs meu nome em linhas traçadas, sempre o mesmo erro dos “ss” que me reduz.
Você foi embora. Um anjo no inferno.

Adolescentemente: amanhã tudo passa.
Estupidamente: a gente amadurece.

Vou querer ficar sendo folha, a última, sempre a ultima. Não vou cair, não vou mudar de cor. Amadureça você, o mundo inteiro.
O azul do céu é inexperiente.
A fecundação do sol só é sábia porque chega cedo.
Só você quer cabelos brancos.
Eu quero ser verde, morrer bem cedo, não conhecer cadeira de balanço, cinderelas, netos, meditações.

Quero queimar os pés.
Meu amor é gay.
O planeta é gay.
Todos estão se colocando de quatro diante dos meus olhos.

Somos desgraçadamente amigos.
Terrivelmente ligados.
Você me olha e a imagem morre. E mesmo refletindo todo o tempo, lá no pedaço de vidro esquisito não há encontros.

Vou invadir sua morada, sua cova, suas cinzas, sua assombração.
Fechou os olhos pra quê?
Vou abri-los devagar... Não chore.
Não chore não...
Nublado o céu, tudo de uma só cor.
Mas não chore: eu faço estrelas de papel crepom.
Te empresto uma borracha eficaz, de duas cores. Não precisa ficar triste: é só apagar.

A metamorfose! Enfim um pássaro!
Não me lembro que eras cachorro.
Um pássaro é sublime.
Um pássaro, veja só! Então existe perfeição?

Não.

Quando foi que vim ao mundo?
Foi numa tempestade assombrosa, pessoas cegas, gente ferida, anjos fustigados.
Vou pra frente do espelho: a rosa do meu cabelo é a mais bela, só eu posso tê-la.

Sexualmente eu era masculina.
Esporadicamente tu eras feminino.
Os nervos da gente errando, os sentidos errando...
Agora você virou novelo. Entra no meu bolso.
Amanhã vou aprender a transformar você num cobertor, porque o inverno dessa vez não vai perdoar.

Não vai haver perdão. Você pra sempre na minha pele, cobrindo-a.
Diante do mundo, nasci e vivo. Diante do mundo, com você por perto.
Foi num dia de vendaval.
Foi num dia de inquietação.
Foi num dia em que os astros se amavam.

A violência perdida no seu olhar.
Nunca mais vamos subir nas árvores.
Você deixa cair seu corpo fraco...
Na frente do espelho, do outro lado, quem é que me sorri?
*** ***
Este foi o primeiro texto em prosa meu publicado. A revista era um projeto experimental de meus amigos jornalistas, Arla Coqueiro & Gil Maciel. Na verde Maceió. Uma das cidades mais naturalmente belas do Planeta Terra. Não existe mais. A revista. Aguda Quase Grave. Gostava desse entre-lugar.
Deu saudades. Envelhecer é isso.


Em Não se vai sozinho ao paraíso, primeiro romance que integra a trilogia místico-erótica de Állex Leilla — cujo centro são as micro-...